Uma das ferramentas mais importantes da medicina moderna, a radiação Hoje, oferece recursos poderosos tanto para o diagnóstico quanto para o tratamento de doenças. Poucos sabem, porém, que a descoberta da técnica resultou inicialmente em perdas de vidas humanas e exigiu uma boa dose de acaso, ou acaso, para acontecer.
O uso controlado da radiação na medicina envolve a aplicação dos princípios da radioatividade, processo que ocorre naturalmente no núcleo instável de alguns átomos. E tudo começou quando o físico alemão Wilhelm Conrad Röntgen divulgou, em 1895, a existência de raio X que, é importante lembrar, nada têm a ver com radioatividade.
O que Röntgen estava realmente investigando era o efeito da passagem de corrente elétrica através de tubos de vácuo, quando notou um estranho brilho fluorescente em uma tela coberta com platinocianeto de bário, embora o tubo estivesse embrulhado em papelão preto. Ele percebeu que se tratava de uma radiação capaz de penetrar objetos opacos, chamando-a de “X” (desconhecido).
Sem saber que os raios X eram produzidos apenas por um estímulo externo, o físico francês Henri Becquerel começou a pesquisar essa luminescência (emissão de luz após absorção de energia) em alguns materiais da natureza. Para testar sua hipótese, ele colocou sais de urânio em uma chapa fotográfica embrulhada em papel preto e os expôs à luz solar por várias horas. A placa ficou escura.
A descoberta da radioatividade
Ainda comemorando a suposta comprovação de sua tese de que o urânio absorvia a energia do Sol e depois “a emitia na forma de raios X”, o físico tentou repetir o experimento dias depois. Mas como o tempo estava nublado em Paris, ele guardou as amostras de urânio em chapas fotográficas num local escuro.
Ao retornar mais tarde, Becquerel observou que, mesmo sem exposição solar, as placas estavam sensibilizadas. Intrigado, o físico repetiu diversas vezes o experimento, variando as condições e os materiais, e percebeu que algum tipo de radiação passava pelo papel preto e velava a emulsão fotográfica.
Segundo o pesquisador Fabio Luiz Navarro Marques, gerente do Centro de Medicina Nuclear da Faculdade de Medicina da USP, o “cosmos” voltaria a conspirar “para que os cientistas Marie Curie e Pierre Curie casar e trabalhar juntos na Universidade Sorbonne, em Paris. Usando um equipamento desenvolvido por Pierre, Marie conseguiu identificar a pechblenda [uranita]um mineral que continha urânio e outros metais mais radioativos do que o próprio urânio purificado.”
Desse processo, o químico explica CNN, Marie Curie descobriu duas substâncias muito mais ativas que o urânio. Nomeando-os polônio e rádioa matemática também cunhou o termo pela primeira vez “radioatividade”.
Pelas suas descobertas, Marie Curie não só se tornou a primeira mulher a ganhar o Prémio Nobel, de Física em 1903 (juntamente com o seu marido Pierre, e Becquerel), mas também foi a primeira pessoa no mundo a ganhar o prémio duas vezes, recebendo também Química em 2011.
Marie Curie e os perigos da radiação
Quando morreu em 1934 de aplasia medular, uma doença rara que impede a produção de células sanguíneas pela medula óssea, Marie Curie desconhecia completamente os efeitos malignos da radiação ionizante. Acostumada a carregar no bolso tubos de ensaio com isótopos radioativos, suas preciosas anotações, e até mesmo seu livro de receitas, são até hoje guardados em caixas de chumbo blindadas para evitar que a radiação escape.
Um dos casos mais notáveis em relação aos riscos das radiações ionizantes ocorreu na década de 1920, nos EUA: houve as chamadas “garotas do rádio”, jovens que pintavam mostradores de relógios com rádio (para brilhar no escuro). Mesmo com suspeitas dos riscos dos materiais radioativos, a administração da empresa não tomou nenhum tipo de precaução.
Utilizando a técnica do “apontamento labial”, as meninas molharam os pincéis com os lábios para obter uma ponta mais fina, o que as levou a ingerir rádio. Essa exposição gerou sérios problemas de saúde para esses trabalhadores, pois a intoxicação radioativa levou à necrose óssea, anemia grave e câncer.
A repercussão pública do escândalo causou regulamentos de segurança mais rigorosos foram introduzidos nos locais de trabalho e incentivaram a criação de instrumentos legais para responsabilizar as empresas pela saúde e segurança dos seus trabalhadores.
Paradoxalmente, o Projeto Manhattanque desenvolveu as bombas atômicas que mataram entre 150 mil e 245 mil pessoas (além de expor 600 mil “hibakusha”, ou pessoas afetadas pela explosão, à radiação de longo prazo), foi a primeira grande iniciativa para desenvolver medidas de proteção contra a radiação, beneficiando os cientistas , engenheiros e as 10 mil “meninas calutron” que, sem saber, separaram o urânio-235 do U-238.
Os benefícios da radiação para o mundo moderno
129 anos após o “eureka” inicial de Röntgen, podemos dizer com segurança que o uso da radiação teve um impacto profundo e transformador na vida na Terra. Hoje, os radioisótopos são utilizados nos mais diversos processos, diz Marques, sendo o principal deles a produção de energia elétrica em usinas nucleares.
Porém, destaca o químico da FMUSP, a outra importante área de aplicação “é na medicina nuclear, onde os radioisótopos se ligam às moléculas, formando radiofármacos, para diagnóstico de doenças neurodegenerativas, miocárdicas e oncológicas. Neste último caso, podem ser usados para tratar tumores.”
Além disso, o especialista afirma que as fontes radioativas também são utilizadas em outros setores, como mineralogia, agricultura, além do uso da chamada radiação ionizante em alimentos, para destruir microrganismos patogênicos e aumentar a vida útil de frutas e vegetais. No controle de pragas, a Técnica do Inseto Estéril (TIE) irradia insetos machos, tornando-os inférteis.
Sobre o risco de os diagnósticos de radiação ficarem desatualizados, com a utilização de novas tecnologias, como as nanopartículas e a IA, Marques é categórico: “de forma alguma, pois todos estes temas são transversais à radiação”. Ele cita o caso das nanopartículas que, quando modificadas com radioisótopos, aumentam seu potencial diagnóstico ou terapêutico. Quanto à IA, ele a vê como uma ferramenta auxiliar.
Por fim, falando em serendipidade, Marques destaca “que o acaso acontece em qualquer área da ciência, e só cérebros capazes de interpretá-lo e ter a tenacidade de procurar uma resposta farão com que esse acaso se transforme em processos que beneficiem a humanidade. ”, finaliza.
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