Os porcos resolverão a crise da falta de órgãos para transplantes humanos? A pergunta, que deu título a um artigo científico publicado em novembro de 2022 no Revista naturezaestá cada dia mais perto de se tornar uma realidade através do xenotransplante, que nada mais é do que a realização de transplantes de órgãos entre diferentes espécies – neste caso, entre porcos e humanos.
A importância desse avanço tecnológico é inegável: só no Brasil, quase 34 mil pessoas aguardam um rim, segundo o mais recente relatório da Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos (ABTO), divulgado no início de maio. O documento informa ainda que, nos primeiros três meses deste ano, 3.982 adultos entraram na lista de espera para um rim e, ao mesmo tempo, outras 668 pessoas morreram sem poder receber um órgão – cerca de sete inscritos por dia.
“Há mais de 30 anos a ciência tenta encontrar uma alternativa para a escassez de órgãos para transplantes. E há algum tempo descobriu-se que os porcos seriam os melhores doadores, tanto pela anatomia dos órgãos, mais próxima da do ser humano, como porque são criados e abatidos em grande número para consumo. Dessa forma, a utilização dos seus órgãos para transplantes será mais bem aceita pela sociedade”, explica o nefrologista Álvaro Pacheco e Silva Filho, integrante da equipe de transplante renal do Hospital Israelita Albert Einstein.
O médico explicou, por exemplo, que no início da pesquisa os cientistas chegaram a cogitar usar órgãos de primatas para transplante em humanos (por causa de uma possível maior compatibilidade), mas a ideia logo foi descartada. “Macacos e chimpanzés seriam provavelmente mais compatíveis, mas nunca foram vistos como uma possível fonte animal para resolver a escassez de órgãos. Imagine criar milhares de primatas para serem sacrificados e doarem seus órgãos. Isso, além de muito mais difícil, teria um impacto muito negativo na sociedade”, avalia Silva Filho.
Outra vantagem dos porcos como doadores, destaca o nefrologista, é que, como existem espécies de diferentes tamanhos, podem ser doadores de órgãos para crianças, adolescentes e adultos, com melhor compatibilidade quando se considera o tamanho dos órgãos.
A principal dificuldade relacionada ao transplante de órgãos de suínos para humanos é o fenômeno da rejeição. Isso acontece por causa de certos antígenos presentes no corpo do porco que o corpo humano não tolera, levando à rejeição imediata. Diante disso, percebeu-se que seria necessário modificar geneticamente os porcos candidatos à doação para “silenciar” os genes identificados como incompatíveis com os humanos.
Durante muitos anos, esta foi uma barreira intransponível, pois não havia conhecimento nem tecnologia para isso. O silenciamento de genes tornou-se possível devido aos avanços da bioengenharia e da genética, começando com a clonagem da ovelha Dolly no final da década de 1990, passando pelo sequenciamento genômico humano completo no início dos anos 2000, até chegar à técnica avançada de edição genética. genes, conhecidos como CRISPR, que permite “desligar” os genes que causam rejeição hiperaguda em humanos.
“Essas três descobertas foram fundamentais para o avanço das pesquisas em xenotransplante. O sequenciamento do genoma humano e do genoma suíno, por exemplo, mostrou a semelhança de 98% entre as duas espécies e permitiu identificar os genes suínos responsáveis por causar rejeição hiperaguda”, relata Mayana Zatz, coordenadora do Centro de Pesquisa e Genoma Humano e Células-Tronco, do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP). Ao lado de Silvano Raia, professor emérito da Faculdade de Medicina da USP, Zatz coordena o projeto Produção Nacional de Suínos Voltados ao Xenotransplante e o projeto Xeno BR, que visa trabalhar na edição genética de embriões suínos modificados para produção de doadores. órgãos para transplantes de rim, coração, pele e córnea.
Projeto Xeno BR
O Brasil está avançando nessa direção. Em abril, o grupo de Zatz inaugurou o primeiro biotério com nível de biossegurança 2 (NB2) dedicado à criação de porcos geneticamente modificados, cujos órgãos podem ser transplantados para humanos. A proposta de criação de um laboratório especial para xenotransplante surgiu há sete anos, idealizada pelo professor Raia, que dedicou toda a sua carreira ao transplante de órgãos – em 1985, realizou o primeiro transplante de fígado de doador falecido da América Latina e, três anos depois, o primeiro com um doador vivo de literatura. Ele viajou ao Alabama, nos Estados Unidos, para avaliar projetos experimentais de xenotransplante e voltou convencido de que esta era a linha de pesquisa mais promissora para a obtenção de órgãos adicionais.
“Há muito tempo que sabemos que os porcos possuem órgãos anatomicamente e fisiologicamente muito semelhantes aos dos humanos. Além disso, têm gestação de quatro meses, com muitos filhotes, e já existe uma tecnologia consolidada para sua criação comercial”, observa Mayana Zatz. “Por outro lado, a utilização de porcos como doadores de órgãos não representaria problemas éticos em relação à proteção animal, porque milhares de porcos são sacrificados todos os dias para consumo. À medida que dominamos a tecnologia de edição de genoma, decidimos aceitar este desafio.”
Silenciando genes de porcos
Como funciona? O primeiro passo, explica o geneticista, é silenciar os genes suínos que causam rejeição hiperaguda em humanos. Segundo ela, até o momento não há consenso sobre quantos genes devem ser silenciados – alguns grupos falam em três, outros acreditam que basta silenciar apenas um gene, e outros ainda acham que, além de silenciar genes suínos, é necessário para inserir genes humanos. “Decidimos usar a tecnologia para silenciar os três genes produtores de açúcar responsáveis pela rejeição”, diz o pesquisador da USP.
Para silenciar genes problemáticos, é necessário realizar a edição genética, desligando alguns genes nas células embrionárias de porcos e depois clonando-os – a mesma técnica que deu origem à ovelha Dolly. “Depois de editadas, as células suínas modificadas são transferidas para os ovos matrizes. Por meio desse processo, são obtidos embriões sem os genes que causam rejeição”, explica o geneticista, destacando que esses embriões são inseridos em porcas que seriam “barrigas substitutas” para carregar os leitões que nascerão geneticamente modificados.
“Já conseguimos silenciar genes. O grande desafio para o Brasil era ter um biotério de segurança máxima – o ‘Pig Facility’ – porque precisamos criar os porcos em um ambiente absolutamente estéril. Inauguramos a primeira unidade no campus da USP e em breve teremos uma unidade maior, no Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT). Ainda não obtivemos os porcos criados, mas já estamos inserindo os embriões nas matrizes que vão gerar esses embriões clonados”, relata o pesquisador.
Ao mesmo tempo em que a equipe do geneticista trabalha na produção de embriões, o professor Silvano Raia coordena outra frente de trabalho no Instituto do Coração (Incor) para montar um sistema de perfusão isolada normotérmica prolongada, para testar a imunogenicidade dos órgãos. Imunogenicidade é a capacidade de uma substância estranha, como um antígeno, de provocar uma resposta imune em um ser humano ou outro animal.
“Vamos utilizar o rim de porco geneticamente modificado e perfundi-lo, durante oito dias, com o próprio sangue do porco. Neste caso, obviamente não teremos rejeição. Então, iremos perfundi-lo com sangue humano tipo O. Temos duas situações possíveis: ou haverá rejeição, ou não haverá rejeição, e estaremos eticamente autorizados a iniciar o uso clínico. Isso é necessário porque precisamos comprovar que o rim produzido em nosso laboratório é compatível para transplante em humanos”, pontua o professor.
A expectativa dos pesquisadores brasileiros é ter um porco apto para ser doador de órgãos dentro de dois anos. Inicialmente, o grupo concentrará seus esforços no xenotransplante renal porque, caso ocorra rejeição, o paciente poderá retornar à hemodiálise e aguardar um alotransplante com uma prioridade que não tinha antes. No caso do coração ou do fígado, por exemplo, isso não é possível porque não existem sistemas que substituam a função desses órgãos.
Xenotransplantes já aconteceram
Nos últimos dois anos, ocorreram alguns transplantes utilizando órgãos de porcos modificados em humanos. O transplante renal foi inicialmente um procedimento experimental – os órgãos foram colocados em pessoas com morte cerebral para estudar como seria o procedimento e quais seriam as possíveis complicações. Os órgãos transplantados não foram rejeitados e produziram urina, o que mostrou que o procedimento era viável.
Em março, a equipe liderada pelo médico brasileiro Leonardo Riella realizou o primeiro xenotransplante clínico de rim suíno em ser humano vivo (sem morte encefálica), em Boston, nos Estados Unidos. O receptor era um paciente com insuficiência renal crônica, previamente submetido a alotransplante, cujo órgão foi rejeitado, determinando que permanecesse em hemodiálise por sete anos. O homem viveu dois meses, sem hemodiálise, com função renal normal, mas acabou falecendo em casa, provavelmente por complicações cardíacas.
“A escolha desse receptor seguiu o princípio ético que determina empregar novos métodos apenas em pacientes indicados para compaixão, ou seja, sem outra alternativa disponível para evitar sua morte em um curto espaço de tempo”, avaliou Raia.
Além do caso de Boston, uma mulher de Nova York com insuficiência renal grave e doença cardíaca crônica também recebeu um rim de porco modificado. “Ela era uma paciente muito grave, que não seria aceita para o transplante devido ao estado de saúde muito precário. Além do rim, ela também recebeu um coração artificial”, afirma Silva Filho, destacando que se trata de dois casos de pacientes extremamente críticos, que não teriam outra opção.
Na avaliação do nefrologista do Einstein, o xenotransplante pode ser um grande aliado dos pacientes diante da escassez de órgãos no Brasil e no mundo. “Estou impressionado. Muito feliz e animado em ver esses primeiros xenotransplantes em humanos. Por todas as dificuldades descritas, pensei que seria muito mais difícil seguirmos em frente. E o Brasil está avançando com o resto do mundo. Isto abre uma perspectiva muito boa e é lógico que terá que ser melhorada ao longo dos anos. É um aprendizado, mas milhares de pessoas estão esperando por um órgão e a lista só aumenta”, comenta.
Também para o professor Raia, o xenotransplante é o futuro dos transplantes no Brasil. E defende que os órgãos suínos sejam distribuídos de acordo com os critérios da lista única actualmente em vigor. “O lema ‘levar primeiro quem paga mais’ não prevalecerá. Haverá um comitê responsável por indicar qual destinatário da lista de espera será mais adequado para receber um órgão suíno. Ele pode autorizar ou não o xenotransplante”, afirma.
Raia ressalta ainda que, assim que houver órgãos suínos disponíveis para os cadastrados, haverá uma antecipação na indicação de transplante, incluindo pacientes menos graves. Para ele, os resultados dos primeiros xenotransplantes fazem parte do andamento das cirurgias, pois “ocorrem pelo sucesso a partir da correção dos erros que determinaram os fracassos anteriores. Foi assim que aconteceu com a história de todos os transplantes.”
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