Inédita, a calamidade no Rio Grande do Sul é um dos exemplos que reforça a necessidade dos governos buscarem uma solução multilateral para a questão climática no mundo, avalia o economista Paulo Hartung, ex-governador do Espírito Santo.
“Do ponto de vista do dever de casa que temos, que é cuidar do nosso planeta, o que acontece no Rio Grande do Sul se soma a tantos outros exemplos de eventos extremos ao redor do mundo, para que possamos ter consciência do que estamos preciso fazer”, diz CNN às vésperas do Dia do Meio Ambiente, comemorado em 5 de junho.
Hartung foi governador do Espírito Santo por 12 anos (2003-2010 e 2015-2018), além de senador (1999-2002). Atualmente é presidente executivo da Associação Brasileira da Indústria de Árvores (Ibá), que representa a cadeia produtiva florestal e defende a transição para uma economia verde no Brasil.
Confira entrevista de Paulo Hartung com CNN:
CNN Brasil: O que acontece no Rio Grande do Sul, em grande parte devido às mudanças climáticas, nos mostra que estamos atrasados no tratamento do tema?
Paulo Hartung: O desastre ambiental no Rio Grande do Sul é gravíssimo. Falar dele é falar da necessidade que todos nós, brasileiros, devemos ter de solidariedade absoluta com o povo gaúcho. E é um episódio contínuo: quando a água começa a baixar, volta a chover.
É muito importante que os governos estejam muito organizados para participar desse processo de recuperação do Rio Grande do Sul em termos de sua infraestrutura e das condições de vida e moradia do povo gaúcho.
O que acontece lá prejudica o Brasil: o Rio Grande do Sul é uma parte importante do país e da economia brasileira e já há discussões sobre produtos que precisaremos ou não importar.
E, do ponto de vista do dever de casa que temos, que é cuidar do nosso planeta, o que acontece no Rio Grande do Sul se soma a tantos outros exemplos de eventos extremos ao redor do mundo, para que possamos ter consciência do que precisamos fazer.
No mundo, podemos até ter bons exemplos unilaterais (contra as alterações climáticas), mas a solução é multilateral, e precisamos de ter a capacidade de mobilizar o mundo para além dos objetivos e compromissos, transformando esses compromissos em ações.
CNN Brasil: Os governos que atuam no Rio Grande do Sul – federal, estadual – têm falado em uma reconstrução verde e sustentável para o estado, trazendo o conhecimento que temos de cidades já adaptadas às mudanças climáticas. É possível que o Rio Grande do Sul se torne um modelo nesse sentido?
Paulo Hartung: O Brasil tem essa chance, sim. Como o Rio Grande do Sul está dentro do Brasil, temos essa oportunidade.
Neste desafio do processo de descarbonização, o Brasil tem oportunidades. E essas oportunidades se tornam concretas para a população se fizermos o dever de casa. E isso se aplica ao território do Brasil como um todo e à liderança do Brasil como um todo.
Nós, humanos, tentamos simplificar as coisas até como autodefesa, mas esses são problemas com os quais não podemos lidar de forma simples. São questões muito complexas e desafiadoras.
Este modo de vida que vivemos não é sustentável. Você tem que virar a chave. Não existe uma solução simples para problemas muito complexos como este.
Precisamos de bons líderes de uma sociedade mobilizada e consciente. E quando falo de bons líderes, eles são líderes planetários. Quando falo de sociedade, estou falando da sociedade do planeta.
Paulo Hartung
Não faz sentido fazer com que a Europa emita menos com a China a emitir incontrolavelmente. Isto não resolve o desafio que temos com as emissões de gases de efeito estufa no planeta.
Não adianta olhar para o chão: é preciso levantar a cabeça, olhar para o horizonte. Não adianta olhar para uma árvore: é preciso olhar para a floresta. É preciso olhar o todo e ter capacidade de agir com engenhosidade e arte.
CNN Brasil: Como você vê o progresso da transição para uma economia verde?
Paulo Hartung: Com o Dia Mundial do Meio Ambiente podemos refletir, avaliar o que foi feito e o que não foi feito, pensar nos desafios que temos — e ainda há esse papel mobilizador da sociedade.
Mas sabemos que a questão não é de um dia: é o desafio de cada dia da jornada humana.
O desafio que enfrentamos no ambiente não tem soluções locais e unilaterais. Este é um desafio planetário e as soluções são globais e multilaterais. Por isso, digo que as COPs estão desempenhando papéis importantes.
A questão que permanece sem resposta desde a COP de Paris até agora, passando por todas as COP do Clima e da Biodiversidade, é se a humanidade está a conseguir evoluir, de forma prática, nestes objectivos que acordou. Infelizmente, a resposta é negativa. O progresso alcançado desde então é muito pequeno em relação aos desafios que enfrentamos.
É por isso que tenho uma visão mais macro e mais global. Se houver um país importante no mundo e fizer todo o trabalho de casa, sozinho não conseguirá enfrentar este desafio. E o que acontece é o contrário, ou seja: os maiores poluidores do planeta resistem como podem para implementar medidas que os movam em direção à sustentabilidade.
E como isso evolui? Temos que mudar a matriz energética, passando de uma matriz predominantemente de combustíveis fósseis para uma matriz limpa. E o que vemos acontecendo nos últimos anos? Um recuo de posições.
Estamos a ver isto na União Europeia. A Europa foi muito ousada com os objectivos ambientais e as actuais eleições na Comunidade Europeia mostram sinais de relaxamento em relação a estas medidas.
A própria eleição americana é um ponto de atenção ao qual precisamos estar atentos, porque pode significar sérios retrocessos. Esta é uma questão global, talvez um dos maiores desafios que as nossas gerações enfrentam neste momento.
Estamos aquém e os sinais batem às nossas portas, dia após dia, em vários eventos climáticos extremos. Estamos a viver uma emergência climática e precisamos de estar conscientes disso – especialmente os grandes líderes mundiais.
CNN Brasil: No Brasil, os estados estão preparados para lidar com as mudanças climáticas?
Paulo Hartung: No interior do Espírito Santo, existe um ditado que diz que a necessidade faz o sapo pular. É sabedoria popular: a necessidade existe. Os problemas estão batendo às nossas portas.
CNN Brasil: Quais desafios e oportunidades o Brasil enfrenta nesse cenário?
Paulo Hartung: O Brasil tem experiências e desafios notáveis, como outros países. O desafio número um, a meu ver, para o Brasil, é combater as ilegalidades que ainda estão presentes, como o desmatamento. Temos que dar o exemplo nesta matéria.
E já que estou falando de uso da terra: grilagem, garimpo ilegal… Isso é um absurdo. Precisamos da presença do Estado dando um bom exemplo.
É preciso lembrar que, nas emissões brasileiras, essa questão do desmatamento e das queimadas tem um peso muito grande. Se o Brasil evoluir numa questão como essa, será um exemplo maravilhoso para o mundo.
Outro ponto que vejo que nos falta é no domínio da regulação. O que os Estados Unidos estão fazendo hoje com a IRA (Lei de Redução da Inflação)? É um plano de estímulo ao desenvolvimento de energias limpas e renováveis, no qual mobilizam quase US$ 1 trilhão.
Eles têm um dinheiro que nós não temos, sim: não adianta pensarmos que, com gogó, vamos repor esse dinheiro. Aqui temos um Estado em desenvolvimento e um país de rendimento médio fortemente endividado. Essa é a realidade no Brasil.
Paulo Hartung
Quando olharmos para a plataforma Green Deal criada na Europa, veremos que ela tem muitas regulamentações. Quando olhamos para a China nos últimos dez anos, há investimento em descarbonização, energia solar e carros elétricos – que estão a ser colocados em todo o mundo. É notável o que eles fizeram, mas há muito dinheiro.
Nestes três exemplos, o orçamento é elevado; está fora do nosso padrão brasileiro. Portanto, se não tivermos esse dinheiro, o que precisamos é da melhor regulamentação do mundo. Precisamos ter um ambiente de segurança jurídica como ninguém tem, e devemos isso a isso.
Já deveríamos ter o mercado de carbono regulado, dialogando com os mercados de carbono de todo o mundo, especialmente da Europa. Isto é importante para um país como o nosso, que tem os activos ambientais que nós temos.
Precisamos melhorar a regulação e acabar com esse negócio onde uma lei vai tramitar no Congresso e grupos de pressão começam a tentar pendurar interesses privados em projetos estratégicos para o país. Temos visto isso com bastante frequência.
Vejamos os ativos ambientais que temos: a maior floresta tropical do planeta, a maior biodiversidade, 12% da água doce do mundo, ventos constantes em diversas regiões que podem ser transformados em energia eólica, sol abundante, uma paisagem espetacular e de muito sucesso experimento de biomassa…
CNN Brasil: A transição energética seria, então, o primeiro passo para uma economia verde?
Paulo Hartung: Os combustíveis fósseis, hoje, fornecem cerca de 80% da energia consumida no planeta. Precisamos migrar.
No Brasil, temos fontes alternativas. Nosso parque hidrelétrico é notável, tornando a matriz energética brasileira única. E temos o sol, outra fonte limpa de energia – e os custos de implementação da energia solar caíram muito.
Temos o vento e ele também promove a energia limpa, que é o vento. E é notável a experiência do Brasil em biomassa, com o uso do etanol e também com o desenvolvimento do etanol de segunda geração.
No nosso setor de árvores cultivadas para fins industriais, temos uma experiência notável: praticamente 86% da energia consumida nas nossas fábricas é energia proveniente das próprias árvores. Quando você decompõe uma árvore, ela tem fibra. Com a fibra você faz celulose, viscose e, quando decomposta, tem também a lignina, o licor negro que a biomassa florestal produz, que gera energia. Essa energia movimenta nossas fábricas.
O Brasil tem experiências notáveis em energias alternativas e limpas. E é por esse caminho que temos que migrar o planeta em geral, aproveitando ao máximo a capacidade do ser humano de criar e recriar caminhos. Este é o desafio do nosso tempo: proporcionar um planeta saudável aos nossos filhos, netos e gerações futuras.
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