A tese aprovada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) de que veículos de imprensa podem ser responsabilizados por declarações de entrevistados em reportagens foi aplicada em casos alheios ao tema, numa ampliação do escopo estabelecido pelo Tribunal.
Decisões judiciais têm utilizado a definição em casos que envolvem publicação não autorizada de fotos, solicitação de direito de resposta e erro de informação, por exemplo.
Em nenhum desses casos há ligação direta com a tese do STF – de garantir indenização pela publicação de entrevista com falsa atribuição de crime a outra pessoa.
A Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) afirma ter mapeado dezenas de situações desse tipo.
Representantes de organizações de defesa do jornalismo ouvidos pelo CNN apontam preocupação com a forma como a decisão está sendo interpretada pelos juízes de primeira instância. Eles argumentam que isso representa um risco para a liberdade de imprensa.
Sustentam ainda que são necessários ajustes na redação da tese, aprovada pelos ministros no final de novembro de 2023.
Existem dois recursos com pedidos de alterações no texto da tese. A análise está na pauta do plenário do STF nesta quarta-feira (5). É o quinto item da lista de julgamentos.
Apesar dos recursos, a tese aprovada pelo Supremo já tem validade. O texto define que a empresa jornalística poderá ser responsabilizada civilmente quando for publicada entrevista em que o entrevistado acusa falsamente outra pessoa de cometer crime se:
- No momento em que a entrevista foi divulgada, havia “evidências concretas” de que a imputação era falsa;
- O veículo descumpriu o “dever de diligência na verificação da veracidade dos fatos e na divulgação da existência de tais provas”.
Um dos pontos questionados nos recursos é o que considera o uso de termos abrangentes e genéricos na tese.
Dividido em dois tópicos, o texto do STF trata da responsabilização por entrevistas apenas no segundo item. No primeiro, há considerações gerais sobre a remoção de conteúdo em razão de informações comprovadamente “injuriosas, difamatórias, caluniosas, mentirosas e em relação a possíveis danos materiais e morais” (leia a íntegra ao final desta reportagem).
A tese tem repercussão geral, ou seja, seu entendimento deve ser aplicado em todos os processos em que o tema seja discutido, em todas as instâncias da Justiça. Isso inclui processos que já estavam suspensos enquanto aguardam a definição da tese e novos que poderão ser ajuizados.
Foto com carrinho de bebidas
Após firmar a tese no STF, os tribunais estão aplicando o entendimento para definir controvérsias que não envolvam declarações de entrevistados em reportagens jornalísticas.
Segundo advogados que atuam em casos ouvidos pelo CNNexemplos disso foram observados no Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP).
Em um dos casos analisados, a tese do STF foi utilizada para negar andamento, em março de 2024, a um recurso extraordinário em que o jornal Folha de S. Paulo tentava anular uma condenação por publicação de foto em reportagem em seu site.
O veículo foi condenado a pagar indenização de R$ 3 mil por danos morais a uma mulher que aparece, ao lado de outras pessoas e com um carrinho de compras cheio de bebidas, em foto publicada na matéria “De um casamento a uma noite em motel: o lembranças inesquecíveis dos amantes do Carnaval”.
Segundo argumento do jornal no processo, a imagem teria sido enviada por uma amiga da própria mulher, que contou sua história relacionada ao Carnaval. O nome da mulher não foi citado na reportagem.
O desembargador Heraldo de Oliveira Silva, presidente da seção de direito privado do tribunal, negou provimento ao recurso, por entender que a decisão de condenar estava “em conformidade” com os posicionamentos estabelecidos na tese do STF.
“O E. Supremo Tribunal Federal julgou a referida questão sob o regime de repercussão geral, de modo a impossibilitar a admissão do recurso neste contexto, nos termos do seguinte precedente”, afirmou o magistrado.
A condenação do jornal havia sido confirmada pela 7ª Câmara de Direito Privado do TJ-SP, em maio de 2022. Os desembargadores entenderam que a imagem foi publicada sem autorização da mulher.
Na votação, o relator Luís Mário Galbetti (falecido em julho de 2022) disse que a indenização permitirá “reparar o dano sofrido” pelo autor da ação e “servirá de lição” ao jornal “para que que não volte a cometer divulgações não autorizadas, é certo que a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas são invioláveis”.
Em outro caso do TJ-SP, a tese do Supremo foi utilizada sem ter relação com a entrevista, mas a favor do veículo.
A associação Médicos Pela Vida tentou garantir direito de resposta a um texto publicado no site B9, especializado em inovação e cultura digital, criticando uma propaganda paga pela entidade em defesa do tratamento precoce contra a Covid-19.
O pedido foi rejeitado em primeira e segunda instâncias. A entidade então contatou o Supremo Tribunal Federal, que devolveu o caso ao TJ-SP para aguardar o apuramento da tese.
No final de abril, foi aplicada a tese do STF para negar provimento ao recurso da associação.
Preso em operação
A tese do STF também foi utilizada pelo Tribunal de Justiça da Bahia (TJ-BA) para suspender a análise de um recurso que contestava a condenação do portal UOL e do jornal O Estado de S. Paulo a indenizar o ex-vice-prefeito de Malhada (BA) por danos morais.
Uma reportagem de jornal noticiou que o político havia sido preso na Operação Vigilante, deflagrada em 2016 pela Polícia Federal (PF) e pela Controladoria-Geral da União (CGU), para investigar um suposto esquema de fraude no transporte escolar em cidades baianas.
A operação, inclusive, prendeu o vice-prefeito de Malhada de Pedras (BA), a aproximadamente 234 km da citada cidade.
O artigo foi republicado no portal. O UOL argumentou no processo que servia apenas como “provedor de hospedagem” do conteúdo, e que não poderia ser responsabilizado nos termos do Marco Civil da Internet.
Sobre esse tema, há outro caso no Supremo Tribunal Federal de reconhecida repercussão geral que aguarda o estabelecimento da tese. A discussão envolve definir as possibilidades de responsabilização da plataforma pelos conteúdos postados em seu ambiente.
O Estadão disse no processo que a matéria era ilustrada com uma foto da Prefeitura de Malhada de Pedras, e era “perceptível” que se tratava de outra pessoa. Ele também argumentou que ocorreu um “erro justificável”, capaz de, pelo menos, reduzir o valor da indenização – fixada em R$ 20 mil.
A condenação foi mantida em segunda instância. O recurso extraordinário em que a discussão deveria ser levada ao STF foi suspenso.
O TJ-BA entendeu que o caso cabia à discussão no Supremo sobre a responsabilidade pelas entrevistas, e que seria necessário aguardar a decisão dos ministros sobre o tema.
“Ambiente inseguro”
Os casos de aplicação ampliada da tese do STF reforçaram um sinal de alerta nas entidades que atuam em defesa do jornalismo.
No final de abril, representantes de associações estiveram no STF para conversar sobre o tema com os ministros Roberto Barroso, presidente da Corte, e Edson Fachin.
A CNN, Katia Brembatti, presidente da Abraji, disse que a entidade está preocupada com a forma como a questão tem sido interpretada nos tribunais inferiores. A associação é uma das autoras de um recurso que pede ao STF alteração do texto da tese.
“Esse medo é baseado na realidade, pois antes mesmo de o caso chegar ao STF ele está sendo mal aplicado”, afirmou. “Está sendo utilizado para postagens nas redes sociais e críticas, que não têm qualquer ligação com declarações feitas durante entrevistas.”
Para ela, o risco de responsabilização de meios de comunicação e jornalistas cria um “ambiente de insegurança e autopoliciamento que pode inibir a publicação de conteúdos de interesse público”.
Advogada e diretora executiva do instituto Tornavoz, Charlene Nagae disse CNN que as decisões confirmaram a preocupação quanto à aplicação da tese, que ela poderia servir de diretriz para definir casos de responsabilidade civil em geral da imprensa, e não apenas para depoimentos dos entrevistados.
O instituto assinou com outras entidades nota técnica enviada a ministros apontando que a tese criava “riscos de autocensura, aumento da judicialização em torno da publicação de entrevistas e aplicação caótica em tribunais inferiores”.
“É importante que a tese se limite ao caso específico”, afirmou. “Porque senão fica muito confuso, vira um preâmbulo de jurisprudência que precisava ser estabelecido como a discussão do caso específico que foi afetado pelo STF. É estranho firmar a tese da responsabilidade civil geral da imprensa no caso que discutimos sobre a declaração do entrevistado”.
Tese
A tese completa aprovada pelo STF em 29 de novembro de 2023 é a seguinte:
- “A plena proteção constitucional à liberdade de imprensa está consagrada no binômio liberdade com responsabilidade, vedando qualquer tipo de censura prévia. É permitida a possibilidade de posterior análise e responsabilização, inclusive remoção de conteúdo, por informações comprovadamente injuriosas, difamatórias, caluniosas, mentirosas e em relação a possíveis danos materiais e morais. Isto porque os direitos à honra, à intimidade, à vida privada e à própria imagem constituem a proteção constitucional da dignidade humana, salvaguardando um espaço íntimo intransponível por intrusões externas ilícitas.
- No caso de publicação de entrevista em que o entrevistado impute falsamente crime a terceiro, a empresa jornalística só poderá ser responsabilizada civilmente se: (i) no momento da publicação, houvesse provas concretas de que a imputação era falsa ; e (ii) o veículo descumpriu o dever de diligência na verificação da veracidade dos fatos e na divulgação da existência de tais provas.”
Compartilhar: