O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) é hoje um dos que pede cautela em relação à situação na Venezuela, após as eleições presidenciais do país no passado dia 28 de julho.
O presidente Nicolás Maduro foi proclamado reeleito pelo órgão eleitoral venezuelano, mas a oposição contesta o resultado oficial. Diz que houve fraude na eleição e que pode comprovar a vitória de Edmundo González Urrutia.
Lula já disse que não viu nada de “anormal” ou “grave” no processo eleitoral de seu vizinho sul-americano. O petista defendeu que o impasse seja resolvido pelo Judiciário.
As declarações surgiram na esteira das preocupações com a situação no país vizinho e dos esforços do Brasil para buscar a normalização das relações com a Venezuela.
Coube a Lula retomar as relações diplomáticas com o país, após a ruptura durante a gestão de Jair Bolsonaro (PL). Com a reaproximação, Maduro fez sua primeira visita ao Brasil em oito anos, em 2023.
A relação do presidente brasileiro com a corrente política do chefe de Estado venezuelano, por sua vez, é mais antiga. Remonta à parceria com Hugo Chávez, catalisador do chavismo e líder da Revolução Bolivariana.
A colaboração resultou em iniciativas de integração regional e no não alinhamento automático com os Estados Unidos.
Também gerou um intercâmbio de projetos nos dois países. Construtoras brasileiras como a Odebrecht tiveram obras no país vizinho financiadas pelo BNDES, por exemplo.
Do lado brasileiro, porém, as promessas de parceria não tiveram tanto sucesso. Um exemplo é a refinaria Abreu e Lima, em Pernambuco, que nunca contou com os investimentos venezuelanos acordados.
PT e chavismo
Partido de Lula, o PT é um aliado histórico do chavismo. A posição reflecte-se, por exemplo, na nota da Executiva Nacional do partido que saudou o processo eleitoral no país vizinho e que reconheceu a vitória de Maduro.
O chavismo afirma estar liderando um processo revolucionário na Venezuela com o objetivo de estabelecer o “socialismo do século XXI” no país.
Em linhas gerais, o movimento iniciado por Chávez retoma o legado do libertador venezuelano Simón Bolívar, líder da independência dos países da região no século XIX.
Assim, o chavismo aposta numa forte integração regional na América Latina e numa oposição feroz aos interesses dos Estados Unidos no continente.
O início da relação Lula-Chávez
Chávez e Lula fizeram parte da chamada “onda rosa” de governos de esquerda em países sul-americanos no início dos anos 2000.
Logo após a eleição de Lula para seu primeiro mandato em 2002, o Brasil negociou o envio de um caminhão-tanque de gasolina para a Venezuela. O pedido foi fruto de uma convergência entre o petista, que ainda não havia tomado posse, e o então presidente, Fernando Henrique Cardoso (PSDB).
A Venezuela enfrentava uma escassez de abastecimento como resultado de uma greve petrolífera levada a cabo pela oposição a Chávez.
Meses antes, em abril, o presidente venezuelano havia sido alvo de um golpe que o afastou do poder por dois dias. Grupos de oposição, com o apoio dos sectores empresariais e militares, conseguiram retirar Chávez da presidência e mantiveram-no na prisão.
O golpe foi revertido e o presidente voltou fortalecido à Presidência. Anos depois, em 2008, Chávez disse que esse golpe tinha como objetivo “afetar a candidatura de Lula” em 2002.
Amizade
Chávez participou da posse de Lula em Brasília, em 2003. Assim que assumiu o cargo, o petista articulou a criação do grupo “Amigos da Venezuela”.
Composta por Brasil, Estados Unidos, México, Chile, Espanha e Portugal, a iniciativa serviu de mesa de diálogo com a oposição venezuelana após a tentativa de golpe e ataques contra Chávez.
Sob o comando dos dois presidentes, Venezuela e Brasil atravessaram o início do século 21 fortalecendo uma parceria estratégica. Lula e Chávez estabeleceram um ritual de reuniões bilaterais trimestrais entre 2003 e 2010.
Um dos frutos desse alinhamento foi o anúncio da construção da refinaria Abreu e Lima, em Ipojuca (PE), ainda em 2003.
O projeto foi formalizado em 2007 e envolveria uma parceria entre a Petrobras e a petrolífera estatal venezuelana PDVSA para a construção conjunta do projeto. Apesar do acordo, a empresa do país vizinho não contribuiu com um centavo na obra.
O complexo iniciou operação parcial em 2014. Dez anos depois, já no terceiro mandato, Lula defendeu a retomada das obras da refinaria.
As obras foram paralisadas em 2015 devido às consequências da operação Lava Jato.
Em 2006, o presidente brasileiro apoiou abertamente a reeleição de Chávez. O discurso foi feito durante a inauguração de uma ponte sobre o rio Orinoco construída pela Odebrecht na Venezuela e financiada pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).
O plano internacional da parceria destaca-se pela organização de entidades e grupos de integração regional, como a União das Nações Sul-Americanas (Unasul), criada em 2008, e a Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac), a partir de 2010.
Em 2012, a Venezuela aderiu ao Mercosul, grupo que na época reunia Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai. Cinco anos depois, em 2017, o país foi suspenso do bloco sob a alegação de ter violado protocolos com princípios democráticos.
Morte de Chávez
Hugo Chávez permaneceu presidente da Venezuela até depois do período em que Lula governou o Brasil. Em 2012, disputou – e venceu – as suas últimas eleições. Ele cumpriria um quarto mandato, mas morreu de câncer em março do ano seguinte.
Lula escreveu dois artigos na imprensa internacional sobre a morte de Chávez. Uma no jornal argentino Página12, outra no influente The New York Times, dos Estados Unidos.
Nos textos, tratava Chávez como um “camarada” e “figura polêmica”, que não fugia do debate e “para quem não havia temas tabus”.
“Tenho que admitir que, muitas vezes, pensei que seria mais prudente ele não tentar falar de tudo. Mas essa era uma característica pessoal de Chávez que não deveria, nem de longe, ofuscar suas qualidades”, disse Lula na matéria para o jornal norte-americano.
“Mas ninguém que seja nem remotamente honesto pode ignorar o grau de companheirismo, confiança e até amor que sentiu pela causa da integração na América Latina, pela integração da América do Sul e pelos pobres na Venezuela. Poucos líderes e líderes políticos, dos muitos que conheci na minha vida, acreditavam tanto na construção da unidade sul-americana e latino-americana como ele.”
Transição para Maduro
Eleito vice-presidente em 2012 na chapa com Hugo Chávez, Nicolás Maduro é quem de fato governou a Venezuela a partir de 2013 por causa da ausência do titular para tratar um câncer.
Ex-motorista de ônibus e dirigente sindical do metrô de Caracas, Maduro foi deputado e até presidiu a Assembleia Nacional da Venezuela. A partir de 2006, foi chanceler no governo Chávez.
Com a morte do presidente, Maduro continuou a governar interinamente até vencer as eleições que foram convocadas para definir o próximo líder do país, em abril do mesmo ano.
Lula chegou a declarar apoio à candidatura de Maduro, tendo enviado um vídeo para uso na campanha presidencial venezuelana.
Maduro já classificou Lula como uma espécie de “pai” do chavismo, pela contribuição do petista às correntes de esquerda que emergiram do novo sindicalismo na década de 1980.
Em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, meses antes da eleição em que venceria pela primeira vez, Maduro disse que se inspirou na “ética de Lula” e na sua “liderança trabalhadora”.
Cronologia da relação entre Lula e Chavismo
- 1998: Hugo Chávez é eleito presidente da Venezuela pela primeira vez;
- 2000: com a nova Constituição aprovada, Chávez é reeleito;
- 2002: golpe de estado tira Chávez do poder por dois dias, mas é revertido. Com Lula recém-eleito, o governo FHC no Brasil atende ao pedido de Hugo Chávez e fornece gasolina para a Venezuela, que sofre com a escassez devido à greve petrolífera contra o presidente do país;
- 2003: em meio a uma crise política com a oposição, Chávez participa da posse de Lula como presidente, em Brasília. O líder brasileiro propõe a criação do Grupo de Amigos da Venezuela, com países da região além de Espanha e Portugal, para lidar com a crise política e social após a tentativa de golpe contra Chávez no ano anterior;
- 2006: Lula é reeleito presidente do Brasil. Apoia abertamente a reeleição de Chávez na inauguração de uma ponte sobre o rio Orinoco construída pela Odebrecht; Chávez vence as eleições;
- 2007: Lula e Chávez anunciam acordo Petrobras-PDVSA para construção conjunta de refinaria em Pernambuco. Nunca houve investimento venezuelano e a Refinaria Abreu e Lima (Rnest) foi alvo da Operação Lava Jato;
- 2008: criação da União das Nações Sul-Americanas (Unasul);
- 2010: criação da Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac). Dilma Rousseff é eleita presidente do Brasil com o apoio de Lula;
- 2012: Venezuela adere ao Mercosul. Com Nicolás Maduro como vice-presidente, Chávez é eleito para a Presidência pela quarta vez;
- 2013: Hugo Chávez morre de câncer. Lula e a então presidente Dilma Rousseff participam do velório em Caracas. Maduro é eleito presidente da Venezuela pela primeira vez, com apoio de Lula em sua campanha;
- 2017: Venezuela está suspensa do Mercosul;
- 2018: Maduro é reeleito presidente em eleição boicotada pela oposição;
- 2023: Maduro faz primeira visita ao Brasil em oito anos; tem reunião com Lula e participa de reunião com um grupo de 11 presidentes sul-americanos. Com o apoio do Brasil, o governo e parte da oposição na Venezuela assinam um acordo de Barbados para eleições presidenciais;
- 2024: Nicolás Maduro é proclamado reeleito pelo órgão eleitoral venezuelano, mas a oposição diz que houve fraude na eleição e afirma que pode comprovar a vitória de Edmundo González. Sem se posicionar, o governo brasileiro solicita a divulgação de dados desagregados por tabela de votação.
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