Ana Helena*, de 10 anos, dificilmente esquecerá os momentos que passou voltando para casa na van escolar após sair da escola. Por morar longe, a mãe contratou um motorista para levar a filha para um local seguro, mas a menina acabou, ao contrário, denunciando sucessivos abusos sexuais nas viagens de volta para casa.
A criança foi entrevistada por uma psicóloga infantil e investigadora da Polícia Civil do Distrito Federal. A história, numa sala lúdica, com paredes coloridas, bonecos e ursinhos de pelúcia para deixar a vítima mais confortável, foi repleta de momentos de terror.
“Tio sempre olhou para trás [motorista no banco da frente] e perguntei se eu tinha namorado, se já o havia beijado. Aí teve um momento que ele parou a van na rua e sentou do meu lado, começou a me abraçar…. Ele disse que estava com frio e começou a passar a mão lá embaixo…”, foi o que a criança descreveu à polícia.
A mãe, em conversa com o CNN, disse que percebeu algo errado com a filha quando ela começou a reclamar de ir à escola e de não querer mais andar na van escolar. E, segundo ela, demonstra irritabilidade com facilidade.
O homem foi preso após investigação da polícia que, além do relato da vítima, ouviu outros depoimentos. Mas o trauma sofrido pela criança, mesmo três anos após o caso, é difícil de esquecer. E para a família também. Mas serão eles passíveis de mitigação?
Segundo Carlos Guilherme Figueiredo, vice-presidente da Associação Psiquiátrica de Brasília (APBr), as crianças mais novas podem não entender bem o que está acontecendo e só perceber que algo estava errado no futuro, na idade adulta.
“As crianças mais velhas podem ter uma maior consciência de que estão a ser vítimas de abuso, mas podem não compreender totalmente as implicações. Depende da idade e do tipo de abuso”, explica ela.
A profissional destaca os principais tipos de abuso infantil: físico, sexual, emocional e negligência. “Cada tipo de abuso pode trazer impactos diferentes na vida da criança e, posteriormente, na vida adulta”, afirma a especialista.
Traumas na vida adulta
E a dúvida que muita gente tem é sobre o trauma que permanece nos adultos que foram vítimas de abusos quando crianças.
Os especialistas observam que as pessoas que sofreram abusos podem desenvolver diversas limitações na idade adulta, incluindo dificuldades emocionais. “Problemas de autoestima, dificuldades de relacionamento, além de diversos transtornos psiquiátricos, como transtorno de estresse pós-traumático, ansiedade e depressão”, disse Figueiredo.
Os laudos periciais mostram ainda que as vítimas de abuso sexual na infância, mesmo depois de anos, podem enfrentar dificuldades na área da sexualidade e nas interações íntimas quando adultas, causando também falta de desejo sexual, aversão ao sexo, dificuldades em estabelecer intimidade e problemas relacionados à autoconfiança.
“A pesquisa indica que o abuso infantil pode ter impactos duradouros na vida sexual na idade adulta. Indivíduos que foram abusados quando crianças podem experimentar reações como ansiedade intensa durante a atividade sexual, sensação de reviver o trauma ou desconexão emocional. Além disso, é comum que essas vítimas experimentem aversão e evitação de relações sexuais, dificuldades de excitação ou orgasmo e até dor durante a relação sexual. Em alguns casos, podem desenvolver um padrão de comportamentos sexuais prejudiciais. É importante que esses indivíduos busquem apoio profissional especializado para lidar com o trauma do abuso e estabelecer uma vida sexual saudável”, orienta a profissional.
E afinal, é possível superar um trauma tão abrupto como esse? Para o especialista, sim. Requer tratamento.
“Felizmente, existem tratamentos comprovadamente eficazes para ajudar as vítimas a lidar com o trauma e a reconstruir a sua sexualidade de uma forma saudável. Técnicas como a terapia cognitivo-comportamental (TCC) surgiram como uma das abordagens mais eficazes. Essa técnica ajuda as vítimas a identificar e modificar pensamentos e comportamentos prejudiciais relacionados ao trauma, reduzindo sintomas como ansiedade e depressão”, destaca o psiquiatra.
Figueiredo explica ainda que outra intervenção com resultados positivos é a terapia de processamento de traumas, como a técnica de Dessensibilização e Reprocessamento dos Movimentos Oculares (EMDR).
Este tipo de tratamento, afirma o psiquiatra, ajuda no reprocessamento das memórias traumáticas, reduzindo a sua carga emocional e permitindo uma integração mais saudável. Em alguns casos, os tratamentos medicamentosos também são necessários e, segundo estudos, demonstram eficácia, principalmente no tratamento de quadros depressivos e ansiosos.
Maio Laranja
Durante todo o mês de maio, a campanha “Maio Laranja” promove a conscientização sobre a importância de prevenir o abuso e a exploração sexual de crianças e adolescentes, visando alertar a sociedade e garantir a proteção dos direitos desses grupos vulneráveis.
Para evitar traumas, a polícia trabalha com prevenção para que os abusadores não cometam crimes. Mas também realizam prisões como métodos mais eficazes. Nos primeiros quatro meses deste ano, a Polícia Federal (PF) realizou 61 operações em todos os estados do Brasil contra o abuso sexual de crianças e adolescentes. A média é de uma operação a cada dois dias.
As prisões, entre preventivas, temporárias e flagrantes, totalizaram 99 pessoas envolvidas em casos de abuso sexual infantil, o que dá uma média de quase uma pessoa presa por dia apenas pela PF.
No nível estadual, também há um número significativo de prisões. No dia 17 deste mês, o Ministério da Justiça, em parceria com a Polícia Civil estadual, realizou a Operação Caminhos Seguros em todo o Brasil, que resultou na prisão de 314 adultos e no resgate de 163 crianças e adolescentes.
Mais de 12 mil agentes de segurança realizaram ações em mais de 450 municípios. Eles inspecionaram 5.300 locais e abordaram cerca de 53 mil suspeitos. A operação atendeu 6,2 mil vítimas e também fiscalizou cerca de 16 mil veículos. Além disso, foram apreendidos 103 armas de fogo, 7,2 toneladas de drogas e 15.900 materiais alusivos à pornografia infantil.
Como denunciar
Estatísticas do governo federal mostram que a violência sexual contra crianças e adolescentes continua elevada no Brasil. O serviço Disque Direitos Humanos (Disque 100) registrou 7.887 denúncias de estupro de pessoa vulnerável entre 1º de janeiro e 13 de maio deste ano. A média de notificações em 134 dias gira em torno de 60 casos por dia ou duas notificações por hora.
O serviço de denúncia funciona 24 horas por dia, sete dias por semana e registra denúncias de violações, divulga informações e orienta a sociedade sobre políticas de direitos humanos. O canal pode ser acessado por meio de ligação gratuita – discando 100 em qualquer aparelho telefônico.
Online, as denúncias podem ser feitas no site da Ouvidoria, pelo WhatsApp (61) 99611-0100 ou Telegram. O serviço também oferece suporte em Língua Brasileira de Sinais (Libras).
*O nome da vítima foi alterado e um nome fictício foi criado para proteger sua privacidade
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