As artes sacras, o ciclo do ouro, as marcas da escravidão. Circular pelas cidades de Mariana e Ouro Preto é como viajar no tempo. E pensar que tudo isso está interligado pelos mais de 1600 quilômetros da Estrada Real, que começou a ser construída no século XVII, pelos portugueses, para transportar a exploração mineira de ouro até o porto de Paraty, no litoral do Rio de Janeiro. Janeiro.
- O centro histórico de Ouro Preto (MG) / Rogério Costa / CNN Brasil
E justamente um dos pontos da Estrada Real foi afetado por outra história: o rompimento da barragem de Fundão, em 2015. O bairro rural de Bento Rodrigues, totalmente devastado pela lama de rejeitos, é um dos 183 locais, entre cidades e distritos, que fazem parte do percurso histórico hoje considerado monumento nacional.
O rompimento da barragem de Fundão e a poluição do Rio Doce fizeram da tragédia de Mariana o maior desastre envolvendo barragens do mundo nos últimos cem anos, segundo a consultoria Bowker Associates. Segundo a FGV, cerca de 2 milhões de pessoas foram afetadas.
- As ruínas do bairro Bento Rodrigues, que atravessa a Estrada Real em Minas Gerais. /Rogério Costa/CNN Brasil
“Temos que construir a região com a participação de todos para deixarmos um legado forte”, afirma Celso Cota (PSDB-MG), prefeito de Mariana. “Temos agora que ver como podemos promover a nossa sociedade utilizando toda a nossa história”, acrescenta.
- O prefeito de Mariana, Celso Cota (PSDB-MG)/Israel Castro/CNN Brasil
Mariana foi a primeira capital do estado de Minas Gerais, fundada em meados do século XVII. Está no centro da história e da cultura do nosso país. Hoje, nove anos depois de a lama ter coberto bairros inteiros da cidade, o desafio é resgatar este património cultural, restabelecer a vida comunitária e criar novas memórias.
- Vista aérea da região da igreja de São Pedro dos Clérigos, em Mariana. O templo foi construído em 1752. / Rogério Costa / CNN Brasil
Novo Bento Rodrigues
Luciene Alves Rodrigues comemorou seu primeiro ano como moradora de Novo Bento Rodrigues em abril. Um cenário bem diferente do que se via no bairro antigo, coberto de lama. Luciene e sua família foram as primeiras a receber as chaves da nova casa e hoje ela já vê a chegada dos antigos moradores de Bento Rodrigues e o sentimento de comunidade voltando.
“Quando tinha jogo, todo mundo ia para campo, gente que gostava. Agora vai voltar aos poucos, né? Daqui a pouco tudo vai voltar… quase ao normal”, afirma Luciene. “Não será a mesma coisa, certo? Mas vamos ter que nos acostumar porque aqui vai ser o lugar da comunidade”.
“É final de semana que as pessoas estão interagindo mais aqui, porque já tem comércio, né? Estamos nos reunindo mais, agora estamos tendo missa e vem gente. Então tudo bem, o domingo é agitado”, finaliza.
- Luciene Alves em sua nova casa, que recebeu em abril de 2023, em Novo Bento Rodrigues/Israel Castro/CNN Brasil
Em sua nova versão, a escola Novo Bento Rodrigues, símbolo da destruição do antigo bairro, já está lotada de alunos.
- As fachadas da escola de Novo Bento Rodrigues (acima), e da escola do bairro antigo, símbolo do desastre de Mariana (abaixo) / Israel Castro / CNN Brasil
O bar de Darliza Azevedo, chamado “Una”, funciona como restaurante. Aqui, os clientes são recebidos com um largo sorriso.
“Foram oito anos travando essa luta esperando. Então agora, graças a Deus, acabou… e podemos começar de novo!”, afirma a cozinheira.
- Darliza Azevedo em frente ao seu restaurante, “Bar da Una” / Israel Castro / CNN Brasil
Além da reconstrução material das casas afetadas, da reparação ambiental do rio Doce e da indenização pelos danos causados pelo rompimento da barragem de Fundão… a retomada do nosso modo de vida é parte crucial do retorno à normalidade.
Na pracinha de Novo Bento, a “serenata ao luar”, organizada pela UNESCO, reúne moradores para cantar e se divertir. É uma das iniciativas das entidades parceiras nos bairros reconstruídos.
- Evento “Seresta ao Luar”, organizado pela UNESCO, no bairro de Novo Bento Rodrigues. A ação visa restaurar o sentido de comunidade entre as pessoas afetadas no novo bairro rural. / Luiza Geoffroy
Para Ricardo Woods, coordenador de reassentamento da Fundação Renova que atuou na construção dos novos bairros, a participação dos moradores na escolha de suas moradias faz parte desse sentimento de pertencimento.
- A maquete do bairro Novo Bento Rodrigues / Israel Castro / CNN Brasil
“A participação da comunidade é o mais importante, certo? As comemorações que temos aqui hoje, muitas delas representam parte do que estava lá originalmente, sim, mas tem novidades também, né? Então o que a gente tem que prestar atenção é realmente ouvir o que a comunidade traz, quais são os seus anseios, quais são os seus anseios nesse novo local”, completa.
- Ricardo Woods, responsável pelo reassentamento / Israel Castro / CNN Brasil
Paracatu
No novo bairro de Paracatu, a escola também foi reconstruída. Há também uma nova igreja, embora os moradores continuem a usar a antiga. E novos estabelecimentos também continuam em construção.
- A igreja de Paracatu de Baixo, que sobreviveu ao tsunami de lama (acima) e a igreja de Paracatu, no novo bairro (abaixo) / Rogério Costa / CNN Brasil
Romeu Geraldo é comerciante e presidente da associação de moradores do bairro. Para ele, restabelecer os laços é uma prioridade.
“Estou dando uma festa, estou fazendo uma confraternização para ver se conseguimos trazer essas pessoas novamente para perto de nós. Caso contrário, cada um fica no seu canto. E não queremos isso”, comenta Romeu.
Passados quase nove anos desde o rompimento da barragem de Fundão, 85% das obras de reassentamento já foram concluídas nas áreas afetadas, segundo a Fundação Renova.
- Romeu Geraldo mostra a igreja de Paracatu de Baixo, coberta de lama e restaurada pela própria comunidade / Israel Castro / CNN Brasil
Baixo Guandu
Ao longo da bacia do Rio Doce, municípios e distritos também foram afetados no Espírito Santo. Lá, as ações de reparação se concentraram na limpeza do leito dos rios e afluentes, no tratamento de esgoto e na indenização de trabalhadores e comunidades cujas atividades foram de alguma forma afetadas.
Uma dessas trabalhadoras é Terezinha Guês, conhecida como Tetê. É artesã e dirigente da associação de artesãos de Baixo Guandu, no estado do Espírito Santo. Como a lama de rejeitos impossibilitou o aproveitamento da argila nas margens do rio, ela e outros trabalhadores tiveram que adaptar seu sustento e matéria-prima.
Ela foi a primeira atingida a receber indenização no âmbito do regime de indenização simplificado, denominado “novo”. A medida foi criada, após decisão judicial, para compensar categorias com dificuldades de comprovação de danos, como lavadeiras, carroceiros, pescadores e artesãos, como Tetê. Dos mais de 37 bilhões de reais desembolsados para obras de reparos, 17 bilhões foram destinados a indenizações.
“Fui uma das primeiras pessoas a ser remunerada e estou muito feliz por isso. E me trouxe um alívio, uma felicidade muito grande quando recebi, que eu tinha certeza que todas as outras artesãs também receberiam”, conta Tetê.
- Tetê e os artesãos do Baixo Guandu, no Espírito Santo / Arquivo Pessoal
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