Vítimas da fome, da violência e de desastres naturais em seus países de origem, milhares de refugiados haitianos e venezuelanos encontraram refúgio no Rio Grande do Sul nos últimos anos, mas as fortes chuvas que assolaram o estado nas últimas semanas os forçaram, mais uma vez, para recomeçar a vida do zero.
Segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), vivem atualmente no Estado cerca de 46 mil refugiados, a maioria formado por venezuelanos (29 mil) e haitianos (12 mil). Chegaram, em grande parte, no programa de interiorização realizado pelo governo federal para retirar imigrantes da fronteira norte do país que entraram por via terrestre em busca de asilo humanitário.
Reginald Descilong, 39 anos, foi um dos haitianos que veio para o Rio Grande do Sul nesse movimento, após cruzar o Caribe e a América Central de barco, ônibus e a pé.
Chegou ao Brasil em 2013, três anos após o terremoto que devastou o Haiti, onde perdeu parentes e amigos. Ele trabalhava na construção civil e como entregador de aplicativos e conseguiu alugar uma casa para levar a esposa e as três filhas.
Agora, por causa das chuvas que inundaram grande parte do Rio Grande do Sul e deixaram pelo menos 151 mortos, ele está com toda a família em um dos abrigos temporários de Porto Alegre.
“Parece que os problemas estão sempre nos perseguindo. Não é fácil”, disse Descilong à Reuters enquanto cuidava das filhas em um abrigo na zona norte da capital gaúcha.
“Perdemos tudo, está lá debaixo d’água, não conseguimos nem chegar de barco”, disse ele.
Ao abrigo onde está Descilong, também chegou Jhony Lecont, 37 anos, acompanhado da esposa e do bebê de 2 anos do casal. No dia da enchente, a família saiu de casa em um barco da Polícia Militar do Rio Grande do Sul, deixando tudo para trás.
“Não sei para onde vou agora, todas as minhas coisas estão debaixo d’água. Vamos começar tudo de novo”, disse ela. Mesmo assim, ele não pensa em sair de Porto Alegre ou voltar ao Haiti. “É muito violento lá.”
Sem documentos e sem destino
Além dos haitianos, o Rio Grande do Sul foi o terceiro estado que mais recebeu imigrantes em processo de interiorização de venezuelanos, segundo a oficial de proteção do ACNUR, Silvia Sander. No total, 21.035 venezuelanos foram ao Estado na operação.
Além disso, segundo dados do Ministério da Justiça, entre 2011 e 2019, 14.063 refugiados tinham empregos formais no Rio Grande do Sul, o maior índice registrado no país.
A maior parte dos refugiados em Porto Alegre mora em Sarandi, bairro simples da zona norte da cidade e um dos que mais sofreu com as enchentes após o rompimento de um dique. São 26.042 moradores com as casas submersas, o maior número entre os bairros da capital gaúcha.
Hoje estão espalhados por vários abrigos da cidade, em grupos de parentes e vizinhos, às vezes sem os documentos que deixaram nas casas inundadas, o que suscita uma preocupação adicional.
A venezuelana Carina Gonzalez, de 27 anos, teve que deixar uma mochila para trás quando tentou sair de casa com água na altura do peito. Continha documentos dela e de sua filha de 11 anos.
“Fiquei meio confusa com as mochilas, meu marido mandou eu deixar a mochila ou meu cachorro. Eu não ia largar meu cachorro, larguei a mochila com meus documentos. Eu não tenho documentos e minha garota também. É minha preocupação. Somos estrangeiros, sem o documento não podemos fazer nada”, afirmou.
O governo do Estado, as prefeituras e o governo federal estão trabalhando em conjunto para fazer novas cópias dos documentos de quem perdeu tudo, inclusive a própria identidade. Mas ainda não chegaram a Carina e à filha.
“Muitas pessoas perderam os documentos que tinham, por exemplo, a carteira do Registro Nacional Migratório, o documento provisório, entre outros que são emitidos pela Polícia Federal, e agora precisarão contar com a organização, por exemplo, de mutirões para emitir documentos para que não fiquem indocumentados aqui no Brasil”, comentou o funcionário do ACNUR.
Carina, assim como o marido, Xavier Velázquez, 30, trabalham com carteira assinada, ela em um hotel, ele na construção civil —dois dos muitos estrangeiros que conseguiram estágios profissionais no Rio Grande do Sul. Por enquanto, os empregos estão garantidos, mas a preocupação em poder voltar ao trabalho é constante.
Os dois, com a filha, entraram no Brasil por Pacaraima (RR), na fronteira com a Venezuela, em 2018. Lá, moraram por um ano, morando na rua, aguardando o visto humanitário concedido pelo governo brasileiro, quando puderam viajar para o Rio Grande do Sul.
Depois de tudo isso, o abrigo onde estão, em Porto Alegre, nem parece ruim, diz Xavier. A vontade é voltar logo para casa, mas não sabem como. “Nem sabemos para onde vamos, mas não temos destino agora”, disse ele.
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