“Machado de Assis me ensinou como ser negro.” A frase é do escritor e professor Jeferson Tenório, vencedor do Prêmio Jabuti 2021 com o livro “O Avesso da Pele”. Dentre os diversos significados que “negro” pode ter, os intelectuais contemporâneos têm rejeitado aqueles que se referem a lugares de inferioridade. É de se esperar, portanto, que seja baseado naquele que é considerado o maior escritor brasileiro de todos os tempos.
Machado de Assis nasceu há exatos 185 anos. A vida e o trabalho sempre geraram os mais variados debates, o que comprova a complexidade de ambos. Durante pelo menos uma década, a afirmação de uma identidade negra e a identificação de um tipo menos óbvio de envolvimento anti-racista ganharam destaque. Para os pesquisadores negros, é fundamental manter o debate em destaque, pois destaca questões que ainda hoje têm força.
É surpreendente que em 2024 ainda tenhamos que provar que ele era um escritor negro”, afirmou Jeferson Tenório, durante participação no seminário Machado de Assis e a questão racial” promovido pela Academia Brasileira de Letras (ABL).
Até o momento não se conhece nenhum documento escrito pelo próprio Machado no qual ele assuma uma identidade racial específica. Que ele era negro é uma premissa dos pesquisadores baseada em pelo menos quatro questões: ancestralidade, fotografias, depoimentos de terceiros e contexto sociopolítico.
A mãe era uma mulher branca e portuguesa. Seu pai, descendente de escravos libertos. Imagens dele mais velho, apesar de ser em preto e branco, mostrariam traços e tons mais próximos da pele negra. E os relatórios contemporâneos reforçariam esta característica.
Ana Flávia Magalhães Pinto, historiadora e diretora do Arquivo Nacional, considera muito emblemática uma carta enviada a Machado em 1871 pelo escritor Antônio Cândido Gonçalves Crespo. O autor escreve: “Excelência eu já conhecia pelo nome há muito tempo. Pelo nome e por uma simpatia secreta que me levou até você quando me disseram que você era de cor como eu. Não se sabe se Machado teria respondido a esta pergunta. Nenhuma carta dele para Crespo foi encontrada.
Para o historiador, o que chama a atenção também é a forma como Machado muitas vezes apoiava outros homens negros ou “de cor”, como era mais comum chamar aqueles que não eram brancos na época. O que ela considera uma “rede antirracista”.
“Machado de Assis, ao longo de sua carreira, tornou-se um grande apoiador de outros homens de cor como ele. Uma forma de desqualificar a postura de Machado em relação à ancestralidade africana é justamente dizer que ele teria se afastado de suas origens, que não teria se envolvido nos debates sobre os destinos dos africanos e descendentes no Brasil”, disse o historiador em um seminário na ABL. “Encontrei José do Patrocínio em seus textos agradecendo a Machado de Assis pela participação nas lutas abolicionistas”.
Ana Flávia diz que é um mito que Machado de Assis quisesse se passar por branco e não se interessasse pelos significados de liberdade e racismo, temas que mobilizavam a sociedade da época. A forma como esse engajamento seria demonstrado, porém, não seria a mesma adotada por outros nomes que ganharam destaque na briga, como o advogado Luís Gama. Haveria diferentes formas de viver a identidade negra e de defender causas abolicionistas e antirracistas.
“Entre aparentes pólos opostos, um de discrição e outro de comodidade pública muitas vezes desconcertante, temos uma infinidade de outras possibilidades que nos fazem ter que pensar como, num país, com grande presença de negros em liberdade, essas vidas tornou-se possível”, disse o historiador. “Não era preciso ter orgulho da origem africana, lembrar de parentes presos na escravidão ou ostentar a pele negra para ser obrigado a lidar com os constrangimentos gerados pela raça.”
Paulo Dutra é professor de literatura e pesquisador das questões raciais na obra de Machado de Assis. Ele endossa o argumento do historiador, no sentido de que a luta do escritor no século XIX se deu de outra forma, nas entrelinhas.
“Cada pessoa usa a sua luta da maneira que pode. Nem todos terão a iniciativa de partir para uma luta mais aberta. Deve ser-lhe dado o direito de não ter podido falar abertamente como outros fizeram, por diversas razões. Não é culpa dele ter sido caiado. Pertence à sociedade brasileira, que ainda luta por um ideal de civilização europeu e branco”, disse o professor à Agência Brasil.
Jeferson Tenório reforça que Machado de Assis mostra como pensar a literatura a partir de um “devir negro”. A expressão, segundo Tenório, baseia-se em duas ideias. Primeiro, a recusa em aceitar os significados de “negro” impostos pelo pensamento colonial. Segundo, a aceitação de ser “negro”, mas compreendido por quem foi vítima da racialização. Para Tenório, é na estratégia discreta de apontar as origens racistas de uma sociedade injusta que Machado opera.
“Pensar em ser negro na literatura é não esquecer de onde viemos. Não se esqueçam que a nossa base como país foi criada a partir do sequestro de corpos negros, da aniquilação dos povos originários e do roubo de riquezas naturais. Assim, podemos pensar que Machado de Assis nos aponta para uma literatura altamente sofisticada e que analisa com precisão as sutilezas da sociedade brasileira. A obra de Machado é uma categoria de recusa do que se espera de um homem negro sob a égide da colonização”, disse Tenório.
Nesse sentido, a recuperação de Machado a partir das identidades e lutas afrodescendentes tem impactos diretos nos processos de autoafirmação da população negra.
“Tem gente que quer ser escritor quando vê que o nosso maior escritor foi um afrodescendente. Isso produz impacto social”, analisa Paulo Dutra. “Estive em uma comunidade do Rio de Janeiro, a convite de uma biblioteca, e Machado de Assis está grafitado nas paredes. Essa recuperação da imagem do afrodescendente está aproximando Machado de um público menos elitista. Machado deixou o povo e está voltando para o povo.”
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