Dependendo da indicação médica, pacientes com Transtorno do Espectro Autista (TEA) precisam ser atendidos por médicos especialistas. O que seria rotina virou dor de cabeça para William Bezerra, pai de uma criança de 7 anos com diagnóstico de autismo.
“O plano de saúde disponibilizava profissionais que não tinham especialização em autismo. Várias vezes ouvi do profissional que não havia nada que eu pudesse fazer, já que ele era, por exemplo, apenas um psicólogo infantil, sem formação específica sobre o transtorno”, conta à CNN.
Bezerra teve que pagar por conta própria profissionais especializados para garantir o tratamento indicado ao filho. Depois de um ano, ele ganhou uma ação judicial e passou a contar com profissionais de planos de saúde.
Casos como o de Bezerra fazem parte de uma lista de mais de 10 mil queixas relacionadas ao tratamento do Transtorno do Espectro Autista (TEA) entre crianças de até 12 anos, em todo o país. Os números são da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), compilados entre janeiro e agosto deste ano.
Este foi o segundo maior número de reclamações registadas nos últimos cinco anos. Em 2019, a ANS recebeu 1.100 reclamações. Ao longo do ano passado, a Agência recebeu o maior número de demandas no período: 15,2 mil.
O elevado número de reclamações contra prestadores de serviços de saúde reflete o aumento de ações judiciais envolvendo tratamento para autismo.
Segundo dados do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), 69% das ações envolvendo terapia para tratamento do autismo levaram à condenação de planos de saúde no período de 2018 a 2021 —11% dos pedidos de condenação foram negados.
O elevado número de judicializações tem causado um impasse no setor saúde, segundo especialistas da área ouvidos pela CNN.
“Tem havido um aumento na judicialização desses tratamentos multidisciplinares, que envolvem o Transtorno do Espectro Autista. Elas ocorrem principalmente por indicações de tratamentos não cobertos pelos planos de saúde”, explica Emerson Medeiros, advogado do escritório Toro e especialista em defesa de prestadores de saúde.
Ele destaca que o fenômeno coloca em risco a capacidade das operadoras de oferecer tratamento a crianças no espectro do autismo.
Diretrizes de Tratamento
Alguns dos processos judiciais envolvem solicitações que não atendem às regras estabelecidas para os planos, aponta a Associação Brasileira de Planos de Saúde (Abramge).
Os clientes questionam a recusa de pedidos de tratamento pelos planos de saúde sem apresentar, por exemplo, laudo médico que comprove o diagnóstico de TEA.
O diretor técnico-médico da Abramge, Cássio Ide Alves, destaca à CNN que é preciso não só garantir que o diagnóstico está correto, mas também entender a frequência necessária do tratamento.
“Temos que pensar nas crianças, isso está lhes prejudicando. Eles podem ser submetidos a uma frequência desnecessária de terapias.”
Alves alerta ainda sobre as orientações equivocadas em relação ao tratamento de crianças autistas, o que muitas vezes leva as famílias a buscarem soluções judiciais.
É também o caso de Ingrid Monte, ativista autista e mãe de uma criança de oito anos com diagnóstico de TEA. Ela conta que começou a enfrentar dificuldades quando teve que mudar de plano de saúde.
Monte concordou em aderir ao novo plano sem carência e incorreu em um custo ainda maior do que o previsto para garantir o tratamento do filho.
Apesar de já pagar muito, ela enfrenta problemas e já entrou com uma ação contra o plano. Um dos tratamentos prescritos para o filho de Ingrid, a terapia ocupacional de integração social, não estava incluído no que era oferecido pelas clínicas do plano de saúde. Com isso, ela passou a pagar sozinha o tratamento do filho e só teve a terapia garantida, por meio da cobertura do plano, quando ajuizou ação judicial.
Ela destaca ainda que muitas mães deixam de processar por medo de que o plano desqualifique o filho ou mesmo por não terem condições financeiras para contratar um advogado. “Falo por muitas mães: não queremos luxo. Queremos resultados e medição. Queremos clínicas funcionais”, destaca.
Ingrid Monte diz ainda que teve dificuldade em garantir o período de tratamento prescrito pelos médicos para a criança. O filho de Ingrid tem prescrição de 20 horas semanais.
“Meu filho precisa desse tempo de terapia ABA, mas as clínicas não querem cobrir essa carga de trabalho e não querem trabalhar nisso tudo”, afirma.
Sobre casos mais extremos de rendimentos com horas de tratamento, o advogado Emerson Medeiros destaca que há casos de ações judiciais contra operadoras quando as famílias consultam, principalmente, médicos particulares que solicitam tratamento de até 100 horas semanais.
Ele explica que colocar as crianças em tratamento clínico por mais de dez horas por dia pode colocar em risco a sua inclusão social e o convívio familiar — elementos essenciais para o bem-estar e o desenvolvimento de todos os seres humanos.
“Nesses casos, pedimos ao juiz que faça exame médico para verificar se o pedido está de acordo. E as operadoras geralmente ganham o caso neste contexto.”
Medeiros explica ainda que, para determinar uma carga horária elevada de tratamento, os profissionais recomendam o acompanhamento das crianças em atividades fora do ambiente de saúde. Segundo o especialista, isso não é responsabilidade do plano.
“No caso do apoio escolar, por exemplo, o Ministério da Educação geralmente oferece profissionais, pois vai além do ambiente clínico e, consequentemente, do plano de saúde. Nestes casos, via de regra, o tribunal entende que não é obrigação da operadora.”
Eficácia do tratamento e falta de diretrizes
A Associação Brasileira de Planos de Saúde também levanta preocupações sobre a eficácia dos tratamentos.
De acordo com decisão da ANS de junho de 2022, as terapias que utilizam os métodos de Análise Aplicada do Comportamento (ABA), Denver e Integração Sensorial, entre outros, passam a ser incluídas na saúde suplementar.
Por isso, o diretor técnico-médico da Abramge indica que é preciso considerar, para o tratamento de crianças com o transtorno, apenas métodos com eficácia comprovada cientificamente. Segundo ele, esse ponto muitas vezes é colocado em risco pela falta de diretrizes oficiais claras.
“Isso é uma preocupação para as operadoras, porque temos uma responsabilidade solidária com os beneficiários. Se for oferecido um tratamento irresponsável, não podemos ignorar”, destaca.
Quem se beneficia com a ausência dessas diretrizes, segundo fontes do setor entrevistadas pela CNN, são as clínicas de tratamento. Muitas vezes, o tratamento estabelecido pelo médico é diferente daquele realizado e determinado pela clínica.
“Sem diretrizes organizacionais claras, muitas clínicas usarão subterfúgios para obter mais lucro. O importante é entender que quem mais perde com isso é a própria criança”, afirma Alves.
Famílias procuram profissionais qualificados
Dado o diagnóstico preciso e a indicação de um tratamento com eficácia científica comprovada, um ponto para o qual as famílias buscam maior apoio é a garantia de profissionais qualificados para tratar crianças autistas.
A Resolução Normativa 539, publicada pela ANS em 2022, definiu que “para abranger procedimentos que envolvam o tratamento/manejo de beneficiários com transtornos globais do desenvolvimento, incluindo transtorno do espectro do autismo, a operadora deverá oferecer atendimento por prestador capaz de realizar o método ou técnica indicado pelo médico assistente para tratar a doença ou condição do paciente”.
A advogada Carla Bertin, CEO do Autismo Legal, relata o baixo número de especialistas no tratamento do espectro do autismo disponíveis nos planos de saúde.
“Quando falamos dessas especificidades, principalmente falando de análise do comportamento, o número de profissionais oferecidos pelo plano de saúde diminui muito, porque normalmente oferecem profissionais generalistas.”
Após um longo período contando com o tratamento do filho, William Bezerra recebeu a notícia de que a operadora havia optado, sem consultá-lo, pelo encerramento do plano de saúde. A decisão só foi revertida, mais uma vez, por meio de ação judicial.
Mas ele não foi o único a enfrentar o problema. Segundo dados da ANS, de janeiro a agosto de 2024, foram feitas 337 reclamações sobre suspensão e rescisão contratual relacionadas ao tratamento de TEA em crianças de até 12 anos.
Bertin, do Autismo Legal, indica que esta não é uma decisão válida à luz do que está estabelecido em lei. “O STJ tem decisão dizendo que pessoas em tratamento não podem ter o plano cancelado.”
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