Quando o país era assolado pela hiperinflação, no início da década de 1990, a análise dos resultados das empresas de capital aberto era muito diferente do modelo atual – após 30 anos de Plano Real. As “blue chips” da bolsa brasileira – maiores empresas em termos de capitalização –, entretanto, eram empresas muito diferentes, em 1994, das atuais, pertencentes a setores como o das telecomunicações, por exemplo.
Com a inflação galopante, outro fator chamou muita atenção: não foi o desempenho operacional, proveniente da fabricação, desenvolvimento ou comercialização de produtos ou serviços em si, que garantiu o resultado positivo ou negativo nos balanços das empresas, mas sim o desempenho financeiro.
Ou seja, o lucro ou prejuízo das empresas, em determinado período, foi determinado basicamente pelas operações de tesouraria das empresas. Esses departamentos, portanto, que funcionavam como “bancos” dentro das empresas, precisavam realizar uma gestão ágil e rigorosa das receitas e despesas financeiras para evitar a desvalorização dos ativos e do capital de giro, por conta da inflação.
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Além disso, foram desenhadas estratégias comerciais para maximizar o fluxo de caixa, como forma de reinvestir as receitas obtidas antes da desvalorização do seu valor nominal. Tudo isso, evidentemente, afetou a precificação dos produtos – que eram vendidos com prejuízo (como nos supermercados), para que suas receitas pudessem ser aplicadas o mais rápido possível. A eficiência operacional das empresas, desta forma, foi sacrificada em detrimento da proteção financeira.
Plano Real e evolução da Bolsa de Valores
O quadro acima pode parecer completamente insano hoje em dia, mas foi o que os corajosos – e poucos, mas sofisticados – investidores brasileiros encontraram ao aplicar seus recursos em empresas listadas nas bolsas de valores do país, há cerca de 30 anos. Até a década de 90, além da Bovespa (hoje B3), em São Paulo, existiam outras bolsas regionais, mas apenas a do Rio, que encerrou suas atividades no início dos anos 2000, também foi relevante como alternativa viável de investimento.
O mercado de capitais, naquela época, não se desenvolvia apenas pela hiperinflação, mas também pelo fato da economia brasileira estar fechada (com barreiras tarifárias, controles de capitais e subsídios à indústria nacional). As recorrentes crises económicas também ajudaram na baixa capitalização e na falta de liquidez dos activos.
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Tudo isto levou à estagnação do mercado de capitais como forma de financiar as empresas.
“Durante o período de inflação alta, o que realmente impulsionou a capitalização das empresas foi o aumento do endividamento”, disse ele ao InfoMoney, economista José Roberto Mendonça de Barros, fundador da MB Associados. A consultoria de Mendonça de Barros, que foi secretário de política econômica do Ministério da Fazenda entre 1995 e 1998, desenvolveu um estudo, publicado em junho de 2000, com o diagnóstico e as oportunidades para o mercado de capitais no Brasil na época – e que serviu como base para a criação do Novo Mercado.
Segundo ele, as necessidades de investimento das empresas eram atendidas por recursos (via dívida) do BNDES, incentivos fiscais ou fundos com algum grau de subsídio, ou mesmo por lucros retidos. Esta foi a forma “mais barata” de capitalizar.
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Definido pelo controlador – geralmente famílias
Também impediu o crescimento do mercado de capitais o fato de a grande maioria das empresas ter controlador definido, ainda que esse grupo – geralmente familiar – detivesse pouco mais de um sexto do capital da empresa. Essa norma fazia parte da Lei das Sociedades por Ações, criada na década de 1970, para “contornar” a “escassez de recursos” das empresas, sem que o “controlador” (uma família, na maioria dos casos) deixasse de exercer tal poder. , embora não detenha a maioria das ações.
Nesse caso, as regras da época previam que um terço do capital da empresa poderia ser composto por ações ordinárias (controle) e os outros dois terços, ações preferenciais. Assim, os acionistas minoritários adquiriram até 66,6% do capital, sem direito a comentar as decisões das empresas.
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“Essa foi a solução criada para que os proprietários controlassem a empresa detendo apenas uma parcela do capital, pouco mais de 16% das ações ordinárias”, disse Mendonça de Barros. “Obviamente, isto foi concebido para ‘poupar’ capital”, explicou ela.
No entanto, isto gerou enormes problemas: “as minorias foram muito maltratadas. Eles tinham preferência na distribuição do resultado, mas, num cenário inflacionário, bastava atrasar a distribuição do dividendo e ele (o produto) perderia o valor”, lembra.
Um dos efeitos indiretos do Plano Real foi que, com a queda da inflação, abriu-se a oportunidade de investimento nas empresas, pois as empresas começaram a crescer (em termos de receita) muito mais rapidamente.
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Anteriormente, com a inflação elevada, o foco das empresas estava nas operações de curto prazo. “A (área) de tesouraria era mais importante que o desenvolvimento de produtos”, explica o economista.
“Com o real bem-sucedido, previa-se a possibilidade de aumentar a base de aplicações para investimentos, via renda variável, em ativos de risco… Até porque o financiamento (por empresas), com recursos subsidiados, havia ficado para trás; era ‘filho’ da inflação alta”, acrescenta Mendonça de Barros.
Fundos de pensão
Além do fato da estabilização cambial, outro fator ocorria globalmente no universo de investimentos: o crescimento dos grandes fundos de pensão. Eram grandes e perenes investidores de longo prazo, que começaram a fornecer capital de longo prazo a empresas em todo o mundo.
“Havia uma oportunidade histórica e datada para as empresas darem um salto no funding (captação de recursos), com a possibilidade desses investimentos de longo prazo por parte dos fundos de pensão”, acrescenta o economista. Assim, as empresas deixam de depender apenas do financiamento, a taxas subsidiadas, do BNDES.
Por outro lado, estes investidores de longo prazo, que visam investimentos com horizonte de retorno de uma década, por exemplo, exigiram, em contrapartida, maior transparência das empresas, na divulgação e qualidade da informação do balanço. Dessa forma, evitariam os riscos de investir em empresas com má gestão e resultados.
Novo Mercado
Foi a partir daí que se desenvolveram os fundamentos e a necessidade para a criação do Novo Mercado, com o objetivo de reunir empresas que valorizavam a transparência nas informações financeiras e operacionais. Ou seja, foram os primeiros passos da Governança Corporativa nas empresas.
Uma das contribuições do estudo da MB Associados foi a busca por exemplos internacionais, como o Neuer Market, na Alemanha, criado em 1997 e que, em três anos, registrou a abertura de capital de 200 empresas. Na época, o mercado de ações alemão era o quarto maior do mundo.
A ideia de governança nas empresas, portanto, nasceu nessa época e se consolidou no exterior, nesse período – os primeiros anos do Plano Real. A maioria dos mercados contava com empresas públicas, mas, diferentemente do Brasil, sem controlador definido, como aconteceu aqui. Portanto, para crescer, o mercado acionário brasileiro precisava evoluir.
Segundo Mendonça de Barros, o mercado de capitais no Brasil tornou-se então uma possibilidade de financiamento de longo prazo, uma vez que, com a inflação baixa, havia expectativa de crescimento mais rápido para as empresas.
“O Mercado Neuer, que até mais tarde desapareceu, foi um exemplo da ideia, em termos internacionais, de uma seleção de empresas em crescimento com governação”, afirmou, citando que muitas startups tecnológicas israelitas capitalizaram, cotando as suas ações na Alemanha.
Avanço lento
Como tudo no Brasil é difícil, o Novo Mercado, porém, demorou a andar. Lançada em 2000, só teve sua primeira empresa em 2002, no caso a CCR (CCRO3). Depois, em 2004, veio a Natura (NTCO3).
Em parte, este atraso ocorreu, segundo Mendonça de Barros, devido à tradição de controlo familiar das empresas, onde a “minoria ou se instala ou sai”. “A venda de ações em bolsa tornou-se uma possibilidade (para empresas), assim como para pessoas físicas, de investimento em renda variável. Mas as empresas precisavam mudar. Mesmo mantendo o controle, deveriam adotar governança com acionistas minoritários.”
Entretanto, outra mudança ocorrida na época para incentivar o mercado de capitais foi a criação, no âmbito jurídico, da arbitragem, para resolução de conflitos.
Seção separada
A inclusão das empresas no Novo Mercado exige uma série de considerações de sua parte, como, por exemplo, a emissão apenas de ações ordinárias (ON), que possibilitam o direito de voto e a participação dos acionistas minoritários nas decisões das empresas.
Segundo a B3, desde a sua criação, o Novo Mercado passou por revisões em 2006, 2011, 2018 e, recentemente, em 2023. No ano passado, o regulamentos de segmentos especiais de listagem – Nível 1, Nível 2 e Novo Mercado – foram alterados, visando aprimorar as regras de liquidez.
Atualmente, cerca de 190 empresas estão listadas nos diversos segmentos do Novo Mercado. Inclusive, estão listados em índices específicos, como IGC (Governança Diferenciada), ITAG (com Tag Along diferenciado), IGCT (negócio de governança corporativa) e IGC-NM (governança corporativa – Novo Mercado).
“O Novo Mercado foi uma resposta, historicamente ajustada, às mudanças do mundo daquela época (final dos anos 90), por mais transparência, mas também àquela estabelecida pelo Plano Real. Os indivíduos passaram a participar mais do mercado e os abusos dos controladores foram reduzidos”, analisa Mendonça de Barros.
Velhas fichas azuis
Outro fator que historicamente chama a atenção é o perfil das empresas. Durante os primeiros seis meses do Plano Real, no segundo semestre de 1994, a principal empresa em bolsa foi a Telebrás, segundo pesquisa de Alos Ayta, realizada a pedido do InfoMoney
A antiga estatal foi cindida em diversas operações, durante o processo de privatização do setor de telefonia, em 1998. Outras empresas, porém, continuam muito ativas, como a Petrobras (PETR4) e a Vale (VALE3), além da Eletrobras ( ELET3), Cemig (CMIG4), Usiminas (USIM5) e CSN (CSNA3). Nestes 30 anos, o que ganhou relevância, principalmente, foi o setor bancário.
Considerando que a Telebras era a empresa mais negociada na Bolsa, naquele momento, a resposta para sua enorme liquidez estava na escassez de telefones fixos, que eram vendidos no mercado paralelo por até US$ 10 mil – numa época em que não havia celulares no Brasil.
Porém, anos depois, com o avanço tecnológico, as usinas de telefonia fixa começaram a perder espaço. Segundo dados da consultoria Teleco, em abril deste ano, existiam 23 milhões de linhas telefônicas fixas no Brasil. Isso representou uma queda de 11% em um ano. A telefonia móvel aumentou 3% no mesmo período, para 258,9 milhões – ou seja, o país tem mais de uma linha por habitante.
Estagnação tecnológica e do PIB
Por fim, Mendonça de Barros utilizou o exemplo da telefonia para explicar, em parte, os motivos da disparada dos preços, provocando a hiperinflação, desde a década de 1980 até o Plano Real, bem como a recessão econômica.
“À medida que a inflação disparou, o sistema económico começou a orientar-se para sobreviver à hiperinflação – e não para inovar tecnologicamente, fazer investimentos, como um país normal. Do ponto de vista micro, estagnamos.”
Isto, acrescenta, de certa forma significava que praticamente todos os sectores da economia sofriam graves “disfunções económicas”. “Não foi por acaso que não crescemos na década de 80”, concluiu o economista.
Esta publicação faz parte da série 30 anos do Plano Real: passado, presente e futuro da moeda que mudou o paísespecialmente o InfoMoney com reportagens, entrevistas, vídeos e matérias sobre a trajetória da moeda brasileira desde sua criação até os dias atuais.
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