O presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), abriu nesta terça-feira (24) os trabalhos dos chefes de Estado na Assembleia Geral das Nações Unidas, apontando crises globais e criticando o funcionamento dos sistemas e órgãos internacionais.
Um dos argumentos de Lula foi que o sistema financeiro internacional não atende mais às necessidades de um mundo globalizado e dos países emergentes.
“As condições de acesso aos recursos financeiros continuam a ser proibitivas para a maioria dos países de baixo e médio rendimento. O peso da dívida limita o espaço fiscal para investir na saúde e na educação, reduzir as desigualdades e combater as alterações climáticas”, destacou Lula na sede da ONU, em Nova Iorque.
“Os países africanos contraem empréstimos a taxas até oito vezes superiores às da Alemanha e quatro vezes superiores às dos Estados Unidos. É um Plano Marshall ao contrário, em que os mais pobres financiam os mais ricos. Sem uma maior participação dos países em desenvolvimento na gestão do FMI e do Banco Mundial, não haverá mudança efectiva”, concluiu.
Tanto ao longo de sua gestão quanto nesta viagem, não é a primeira vez que o petista faz críticas desse tipo. No domingo (22), Lula participou da Cúpula dos Partidos, na qual também apontou problemas na base da mecânica financeira entre os países.
“A Assembleia Geral perdeu a vitalidade e o Conselho Económico e Social foi esvaziado. A criação de um fórum de diálogo entre chefes de Estado e de Governo e líderes de instituições financeiras internacionais promete colocar a ONU novamente no centro do debate econômico global”, destacou Lula.
“As instituições de Bretton Woods ignoram as prioridades e necessidades do mundo em desenvolvimento. O Sul Global não está representado de forma consistente com o seu atual peso político e económico”, concluiu antes de ter o microfone cortado por esgotamento do tempo de uso da palavra.
Um dos principais economistas da atualidade, Barry Eichengreen, salienta CNN que o Presidente Lula tem razão ao indicar que os países avançados em geral, e os Estados Unidos em particular, têm poder de decisão desigual no âmbito do FMI e do Banco Mundial.
Mas reforça que a reforma do sistema pode não ser tão prática quanto se espera.
“Houve apelos anteriores para que questões de governação económica e financeira global fossem entregues à Assembleia Geral da ONU, onde todos os países estão representados e é um país, um voto. Mas estas ligações não são práticas. Os EUA, a Europa e o Japão resistiriam”, explica Eichengreen.
“É duvidoso que uma cacofonia de 190 países consiga chegar a acordo sobre alguma coisa. O melhor seria continuar a pressionar pela reforma das próprias instituições de Bretton Woods”, afirma o professor de economia e ciência política da Universidade da Califórnia.
O que foi Bretton Woods?
Em meio à devastação causada pela Segunda Guerra Mundial e às consequências da crise de 1929, economistas de 44 países reuniram-se para redesenhar o formato do sistema financeiro internacional.
Naquela época, o cenário econômico era marcado por recessão, escassez de crédito e queda na produção.
A Conferência Monetária e Financeira das Nações Unidas ocorreu em 1944, realizada em Bretton Woods, New Hampshire, nos Estados Unidos.
“O objetivo central era construir um sistema monetário estável que pudesse promover o crescimento económico global e evitar as políticas protecionistas que exacerbaram a Grande Depressão na década de 1930”, explica Thiago de Aragão, CEO da Arko Internacional, uma empresa de estratégia corporativa e institucional sediada nos EUA.
Os acordos definiam um sistema de taxas de câmbio fixas, em que as moedas dos países estavam indexadas ao dólar americano, que por sua vez era garantido pelo ouro.
O chamado padrão dólar-ouro permaneceu em vigor até 1971, quando foi derrubado pelo então presidente dos EUA, Richard Nixon, para proteger a moeda face à procura global pelo precioso mineral. Mas, até hoje, ambos os valores são usados como referência no mercado.
Além disso, e principalmente, a conferência foi o berço do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD), o embrião do Banco Mundial.
“O FMI foi criado para oferecer assistência financeira a países com desequilíbrios temporários na sua balança de pagamentos, enquanto o Banco Mundial concentrou os seus esforços na reconstrução de nações devastadas pela guerra e no desenvolvimento económico”, aponta Aragão.
Ambos os organismos continuam a ser as principais instituições financeiras internacionais. Mas o que se aponta é que ambos pouco evoluíram desde então em relação à sua governança e, apesar de terem sido importantes para a estruturação do sistema pós-1945, não teriam condições de atender às demandas do mundo contemporâneo.
Leonardo Trevisan, professor do curso de Relações Internacionais da ESPM e mestre em História Econômica, destaca que as decisões tomadas em Bretton Woods estão de fato muito ligadas ao contexto de 1944
“Os órgãos criados pela conferência têm uma receita muito clássica para lidar com crises económicas. Se você olhar as palavras do presidente ‘eles desconsideram as necessidades e prioridades dos países em desenvolvimento’, você verá que ele reclama exatamente disso”, diz Trevisan.
Como um dos 44 participantes da Conferência de Bretton Woods, o Brasil é um dos membros fundadores do FMI e do Banco Mundial. E a sua participação teve impactos profundos na trajetória económica do país.
“A adesão permitiu ao Brasil ter acesso a empréstimos e assistência financeira em momentos cruciais, especialmente durante crises económicas. Ao longo dos anos, o Brasil recorreu ao FMI para enfrentar problemas de balanço de pagamentos e implementou ajustes econômicos sob orientação da instituição”, explica Aragão, da Arko Internacional.
“As políticas e recomendações do FMI influenciaram as reformas estruturais e as medidas de austeridade adoptadas pelo país. Ao mesmo tempo, o Banco Mundial financiou diversos projetos de desenvolvimento no Brasil”, finaliza.
Porém, a adoção do dólar e do ouro como padrões após Bretton Woods teria imposto dificuldades ao Brasil, segundo William Daldegan, professor do curso de Relações Internacionais e coordenador do grupo de pesquisa “Economia, Política e Desenvolvimento Internacional” da Universidade Federal de Pelotas (UFPel).
“Imediatamente, os países com moedas fracas foram ‘forçados’ a adotar o dólar como moeda de referência para as transações internacionais. O Brasil passava por dificuldades porque o volume das reservas de ouro do país era limitado e em qualquer situação de crise ou falta de liquidez internacional, o acesso ao capital ficava mais caro para países periféricos como o Brasil”, diz Daldegan.
“Atualmente, o Brasil é credor do FMI e não está sujeito a essas condicionalidades. Mas, embora esteja entre os 10 maiores cotistas do Fundo, não tem poder de voz e veto a ponto de impactar suas decisões.”
Necessidade de reforma
Barry Eichengreen salienta que os mercados em desenvolvimento estão sub-representados tanto no FMI como no Banco Mundial.
“As cotas e o peso de voto desses agrupamentos de países, e sua representação nas Diretorias Executivas e na alta administração dessas instituições, eram adequados ao contexto de 1944, quando o Banco e o Fundo foram criados, mas o cenário mudou e as instituições têm demorado a se adaptar”, diz Eichengreen.
“Não é surpreendente que os países mais representados estivessem relutantes em abrir mão das suas vantagens”, conclui.
Mas, ele avalia CNN que houve mudanças importantes nos últimos anos, como a demissão da Bélgica do Conselho Executivo do FMI e a presidência do indiano Ajay Banga no Banco Mundial.
Leonardo Trevisan reforça o ponto de vista ao recorrer à gestão de Kristalina Georgieva como diretora-geral do FMI, que ocupa o cargo desde 2019.
Na avaliação do professor, com a chegada de Georgieva, o Fundo está mudando a forma como analisa as questões de cada país, considerando suas necessidades e realidades específicas.
Mas isto por si só não seria suficiente para tornar a estrutura do corpo mais igualitária.
“O subtexto do discurso de Lula é que ele quer um espaço para o Sul Global na tomada de decisões do Fundo. Ele [o órgão] tem um quadro em que aqueles que mais colaboram com o Fundo têm o maior peso na tomada de decisões e, obviamente, o maior são os Estados Unidos. Seria difícil imaginar [mudanças para] o que [o Sul Global] tenha espaço”, pontua Trevisan.
Aragão comenta que há uma percepção crescente de que o sistema financeiro estabelecido em Bretton Woods já não reflecte a realidade económica actual.
O argumento é que as estruturas de governação do FMI e do Banco Mundial estão ultrapassadas, favorecendo desproporcionalmente as economias desenvolvidas e negligenciando as economias emergentes.
“Portanto, as críticas baseiam-se na necessidade de reformar estas instituições para torná-las mais democráticas e alinhadas com os desafios económicos contemporâneos, incluindo a interdependência global e a recorrência de crises financeiras”, conclui o CEO da Arko.
William Daldegan destaca que as críticas à governança das instituições financeiras são um dos pontos centrais da agenda dos BRICS, grupo que reúne Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul.
O bloco, que além de ter fundado um banco destinado a apoiar os mercados emergentes, procura agora criar uma moeda comum para facilitar as transações entre eles e reduzir a dependência do dólar.
Obstáculos
Lula destacou que a ONU deveria recuperar o seu papel central no debate econômico. As Nações Unidas possuem agências próprias ligadas ao tema, como o Conselho Econômico e Social e a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento.
Portanto, para que a ONU volte a ocupar o centro das atenções, seria necessário que estes órgãos fossem reforçados. Em suas críticas, Lula destacou que essas agências estão vazias.
“No entanto, esta mudança exigiria um compromisso significativo dos Estados-membros para reformar a estrutura atual, possivelmente transferindo parte da influência de instituições como o FMI e o Banco Mundial para a ONU”, questiona Aragão.
No entanto, Trevisan acredita que existe uma forte falta de liderança global para promover o redesenho da realidade que temos hoje.
“Não temos uma figura mais global na União Europeia como [a ex-chanceler alemã Angela] Merkel. Nos Estados Unidos, há o desenvolvimento de um pensamento isolacionista e protecionista que o torna complexo. China de Xi [Jinping] Não é do Deng [Xiaoping] são coisas diferentes. A de hoje é nacionalista, protecionista e busca o comércio internacional onde tem vantagens”, pondera.
“A globalização mudou o seu perfil e é esta mudança de perfil que exige uma reformulação da governação global. Mas não sei se os atores essenciais para a reforma estão preparados”, afirma o professor de RI.
Desta forma, William Daldegan acredita que a centralidade do FMI e do BM tende a prevalecer. Mas reforça que fóruns como o Brics e o G-20 podem contribuir para o debate de uma forma que se desvie da estrutura atual.
E embora seja um desafio, Aragão conclui que “a transição poderá promover uma governação económica global mais democrática e que responda às necessidades de todos os países”.
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