O Brasil de 2024, em que os investidores têm centenas de opções de aplicações financeiras na palma das mãos, faz o país antes do Plano Real, que completa 30 anos nesta segunda-feira (1), parecer um filme de ficção. A diferença é tecnológica, mas sobretudo econômica: na década de 1980, com os juros chegando a 2.000% ao ano, a renda fixa parecia tentadora, mas a inflação transformou os investimentos em um cenário de Velho Oeste.
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Apesar da correcção monetária, a inflação subiu tão rapidamente que foi difícil calcular os ganhos reais sobre os activos. “É claro que sentíamos que a taxa nominal estava muito alta, mas calcular a taxa de juros real foi muito difícil, devido à velocidade da inflação”, explica William Eid, professor do Centro de Estudos em Finanças da Fundação Getúlio Vargas (FGV) . “Se a inflação de 0,5% ao mês é ruim, imagine 100% ao mês. Só é possível fazer aproximações”, explica.
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Há alguns anos, diz o professor, um ex-banqueiro foi processado por um investidor que cobrou na Justiça R$ 500 milhões pelo pagamento de um título ao portador de 1986, no valor de 100 milhões de cruzeiros. Foi preciso que Eid e os ex-ministros da Fazenda Maílson da Nóbrega e Delfim Netto analisassem os números. “Não se trata apenas de correção de juros, correção monetária. Olhei preços de carros e muitos objetos em revistas para chegar a uma faixa confiável, que ficava entre R$ 200 e R$ 400 mil”, lembra.
Veja a evolução da inflação na década de 1980 medida pelo IPCA e pelo NPC:
Ano | IPCA* (%) | INPC** (%) |
1980 | 99,25 | 99,70 |
1981 | 95,62 | 93,51 |
1982 | 104,79 | 100,31 |
1983 | 164.01 | 177,97 |
1984 | 215,26 | 209.12 |
1985 | 242,23 | 239,05 |
1986 | 79,66 | 59,20 |
1987 | 363,41 | 394,60 |
1988 | 980,21 | 993,28 |
1989 | 1972.91 | 1863,56 |
1990 | 1620,97 | 1585.18 |
*IPCA: Índice de Preços ao Consumidor Amplo
**INPC: Índice Nacional de Preços ao Consumidor
Antes do Plano Real, o mercado financeiro no Brasil era menos desenvolvido e tinha muita informalidade, principalmente no setor imobiliário, onde as transações eram feitas em dinheiro, sem declaração. Quanto à Bolsa, nem é preciso dizer: pouquíssimas pessoas investiram em ações. E uma crise em 1987, no final do Plano Cruzado, coincidiu com o caso Naji Nahas e o colapso da Bolsa do Rio, o que ajudou a minar a confiança dos investidores.
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Mas a fraca infra-estrutura do mercado também não ajudou. Houve muita concentração, com a Eletrobras respondendo por 60% do Ibovespa, e liquidez dividida: Petrobras, apenas em São Paulo; e Vale, apenas no Rio de Janeiro.
A BMF (antecessora da B3), originada da união da Bolsa de Mercadorias e da Bolsa de Futuros, chegou a surgir com alarde em 1985 e figurar no topo do ranking mundial de número de contratos. Mas foi apenas uma ilusão. Os valores de cada contrato no Brasil foram cerca de 20 vezes menores que em Nova York, o que ajudou a inflar o número.
Nessas condições, naquela época, comprar ações em bolsa era considerado “loucura”. No Brasil pré-Plano Real reinaram outros três investimentos: Ó durante a noitetítulos ao portador e o dólar “preto“.
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Pernoite
Ó durante a noite Era o investimento mais comum no Brasil antes do real, principalmente porque era simples: bastava perguntar ao gerente do banco e ter certeza de que o valor seria corrigido no dia seguinte. “A dívida pública era muito curta, acontecia quase no dia a dia. Os bancos compraram papel do governo e venderam ao público com compromisso de compra no dia seguinte”, explica Glauco Cavalcanti, gestor de fundos, que trabalhou na Tesouraria do Banco Garantia entre 1991 e 1998.
Ó durante a noite não era um ativo, mas um mercado. Os investidores geralmente nem sabiam em que estavam investindo. Os bancos vendiam títulos públicos, como as ORTNs (Obrigações Reajustáveis do Tesouro Nacional, mais tarde chamadas de OTNs), antecessoras das atuais NTN-Bs, conhecidas como Tesouro IPCA+.
Mesmo os primeiros fundos de commodities, que deveriam comprar soja e algodão na Bolsa, na verdade aproveitaram uma brecha na regra e aplicaram-na também no mercado. durante a noite, diz Cavalcanti. Ou seja, funcionavam como fundos de renda fixa.
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As taxas para durante a noite acompanhavam momentos de turbulência, então podiam oscilar bastante. Chegaram a 2.000% ao ano em 1989, mas também entregaram “apenas” 15% ao ano em 1986, em meio a medidas do Banco Central durante o Plano Cruzado.
“[No Plano Cruzado, foi proibida] a utilização de cláusulas de correção monetária em qualquer contrato com prazo inferior a um ano. Com isso, ORTNs com vencimento entre março de 1986 e fevereiro de 1987, que rendem juros médios de 15% ao ano acima da correção monetária começou a produzir um taxa nominal de 15% ao ano”, o que limitava a renda dos durante a noiteexplica Pedro Bodin de Moraes, diretor de Política Monetária do BC entre maio de 1991 e janeiro de 1992, em artigo publicado em janeiro deste ano no Revista Brasileira de Economia Política.
Mesmo com tantas oscilações, o durante a noite era a opção mais segura para os investidores num país onde a estabilidade era rara. A rotina era:
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- Deposite dinheiro antes do fechamento do horário bancário;
- A partir desse momento, pagar todas as despesas em cheque, que só seria descontado no dia seguinte, quando o dinheiro já teria sido arrecadado;
- Quando chegava a hora de resgatar, era sempre imediato. Prazos como T+30, comuns hoje na indústria de fundos, eram impensáveis.
Vínculos de portador
Outro veículo importante para a compreensão dos investimentos na década de 1980 foram os títulos ao portador, que conferiam ao titular de um título físico o direito de resgatar o valor investido acrescido de juros em uma data acordada. Mas se a pessoa perdesse o papel, perdia tudo.
Os títulos de papel existiam décadas antes do Plano Real e alguns ofereciam cupons. Cada peça tinha o valor e as datas em que o investidor poderia trocá-la pelo valor prometido.
Com a instabilidade económica, o mercado secundário destes títulos ficou muito aquecido. Na década de 1980, o sistema Selic havia sido criado recentemente e ainda não havia obrigação de registro dos investidores, então os títulos ao portador eram negociados de mão em mão, assim como o dinheiro. Não era possível dizer que se tratava de um mercado paralelo, pois tudo era legal, mas a informalidade era alta.
Dólar “preto”
Outra característica da informalidade foi o dólar.”preto“. O brasileiro, assim como os argentinos atualmente com o dólar”azul“, recorreram à moeda americana para preservar o valor do salário e ter dinheiro para viajar para o exterior. Mas nada foi feito pelos bancos: todos procuravam blequistas, ou doleiros.
“O doleiro tinha um papel social ativo porque, para viajar para o exterior, só podia levar oficialmente mil dólares. Então todo mundo saiu com aqueles cintos de dinheiro dentro da roupa para poder gastar lá fora. E o truque foi: você recebia seu salário e, imediatamente, ia ao doleiro e comprava dólares”, lembra o professor da FGV.
Tudo mudou com a chegada do Plano Real, que não só controlou a inflação, mas também trouxe paridade com a moeda americana por alguns anos, reduzindo o papel dos doleiros. A última grande oportunidade no dólar pré-real, porém, surgiu momentos antes da transição.
Há exatos 30 anos, em 30 de junho de 1994, o Banco Central divulgou o último preço da URV (unidade real de valor), e acabou telegrafando a cotação do dólar na estreia do real. “Quando vimos o número, Guilherme Amaral e eu, que cuidamos do câmbio do Garantia, descobrimos que o primeiro câmbio do dólar seria de R$ 0,95”, diz Cavalcanti.
A cotação significou uma queda de 5% na moeda americana em um dia. Era a janela para ganhar muito. “Ligamos para todos os bancos, Citibank, Morgan Chase, Deutsche Bank, e estávamos recebendo trocar qualquer preço. No dia seguinte, o dólar abriu a R$ 0,95 e ganhamos muito dinheiro.”
Foi, talvez, o tiro final no oeste selvagem dos investimentos brasileiros.
Esta publicação faz parte da série 30 anos do Plano Real: passado, presente e futuro da moeda que mudou o paísespecialmente o InfoMoney com reportagens, entrevistas, vídeos e matérias sobre a trajetória da moeda brasileira desde sua criação até os dias atuais.
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