Após intensa discussão durante a audiência pública realizada na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado sobre a proposta que transfere terras marítimas para ocupantes privados, estados e municípios, o assunto levantou dúvidas sobre o que está em jogo.
A CNN consultou especialistas em direito constitucional, que explicaram o que são as terras da Marinha e quais os possíveis impactos de uma eventual aprovação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 3/2022.
O conceito de terra de marinha existe no Brasil há mais de dois séculos, tendo sido implementado visando à segurança e ao fortalecimento nacional.
Segundo Gustavo Sampaio, professor de direito constitucional da Universidade Federal Fluminense (UFF), trata-se de “terrenos de propriedade da União Federal na faixa litorânea, com acesso ao mar, com vão que mede o equivalente a 33 metros de altura maré (que é uma amplitude definida pela média das marés)”.
Marinha Terrestre x Marinha Terrestre
Isso significa que toda a área da costa brasileira dentro de 33 metros dessa linha imaginária para o continente é categorizada como “terra marinha” – o que inclui praias e contornos de ilhas.
O advogado Antonio Carlos de Freitas Junior, mestre em Direito Constitucional pela Universidade de São Paulo (USP), destaca, porém, que é preciso entender a nomenclatura.
“É importante ressaltar que se trata de terras de Marinha e não de Marinha. Esses bens pertencem à União. Então, é terreno de marinha pela proximidade com o mar, e não se trata de propriedade da Força Armada chamada Marinha”.
Especialistas ressaltam que, embora os terrenos sejam de propriedade da União, isso não significa que sejam utilizados pelo governo federal. Na prática, vários projetos, desde moradias a hotéis, são construídos neste espaço.
Emfiteutas
Segundo o governo, existem cerca de 500 mil imóveis no país classificados como terrenos marinhos. Destes, cerca de 271 mil estão registrados em nome dos únicos responsáveis, entre pessoas físicas e jurídicas.
As pessoas que adquirem essas propriedades, e não os proprietários, são legalmente conhecidas como “emfiteutas”. Isso garante, mediante observância de regras específicas, o “direito ao uso privativo e à posse permanente daquele bem que efetivamente pertence à União”, explica Sampaio.
O imóvel continua, a rigor, de propriedade da União, “porque a área da praia é importante para a segurança nacional e, hoje, para a proteção ambiental, porque sabemos que há muitos comportamentos abusivos ao meio ambiente no Brasil, especialmente neste zona de praia”, acrescenta.
O que a PEC propõe?
A PEC sugere a revogação de um trecho da Constituição e propõe que seja autorizada a transferência de territórios da Marinha para ocupantes privados, estados e municípios.
“A PEC foi aprovada, tudo que é público virou privado? Não necessariamente, você terá uma lei que vai regular os atuais e novos ocupantes”, explica Freitas Junior.
“Para que um bem público se torne privado há todo um procedimento administrativo”, acrescenta o advogado.
Aprovada na Câmara, a proposta passou a ser analisada pelo Senado.
Se aprovado, o texto permitirá que empresas de diversos setores obtenham o controle desses territórios, como resorts, hotéis, cassinos e instituições de outros segmentos.
Essa prática ocorre em diversos centros turísticos ao redor do mundo. É o caso da cidade de Cancún, no México, conhecida por possuir resorts com praias particulares paradisíacas.
União, estados e municípios
Ainda segundo o texto, a União poderá ter controle sobre praias e outras áreas marinhas em ocasiões específicas. Nestes casos, o acesso aos territórios permanece público:
- áreas afetadas pelo serviço público federal;
- áreas que possuem unidades ambientais federais;
- áreas desocupadas.
Segundo Sampaio, a proposta não prevê a privatização da faixa de areia e a limitação do acesso a particulares – o que seria inconstitucional.
“Mas, na prática, isso pode acontecer, porque se essas regras de preservação ambiental forem flexibilizadas, as construções vão começar a avançar em terrenos marinhos, vão começar a ser colocados muros, cercas, arame farpado e isso vai acabar impedindo o acesso do cidadão comum para as praias”, avaliou.
A PEC sugere ainda que estados e municípios obtenham controle sobre áreas afetadas por serviços públicos estaduais e municipais, “inclusive aquelas destinadas ao uso de concessionárias e licenciadas de serviços públicos”.
*Com informações de Rebeca Borges e Mayara da Paz
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