Apenas uma pequena proporção dos incêndios florestais que se espalham pelo país são provocados por causas naturais. A observação é da doutora em geociências Renata Libonati, coordenadora do Laboratório de Aplicações Ambientais por Satélites (Lasa) da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
“De todos os incêndios que acontecem no Brasil, cerca de 1% são causados por raios. Todos os outros 99% são ação humana”, diz ele.
O pesquisador é responsável pelo sistema de Alarmes, monitorando diariamente por imagens de satélite e emitindo alertas sobre presença de fogo na vegetação. Ao relacionar os dados com a atual proibição de atear fogo à vegetação, ela afirma que “todos esses incêndios, mesmo que não tenham sido intencionais, são de alguma forma criminosos”, disse ela em entrevista à Agência Brasil.
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Com base em dados que ficam disponíveis a cada 24 horas, o professor avalia que “a situação é muito crítica” nos três biomas analisados, sendo a pior já registrada na Amazônia. Em relação ao Cerrado e ao Pantanal, ela destaca que a presença das chamas está “muito próxima do máximo histórico”.
Renata Libonati associa o fogo que consome a vegetação em diversas regiões brasileiras às atividades econômicas. “A ocorrência de incêndios no Brasil está intimamente relacionada ao uso do solo.”
Com o olhar de quem acompanha cada vez mais eventos climáticos extremos, o pesquisador percebe um ultimato: “Nosso estilo de vida atual é incompatível com o bem-estar da nossa sociedade no futuro”.
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Acompanhe os principais trechos da entrevista:
Agência Brasil: Com base no monitoramento feito pelo sistema de Alarmes é possível traçar um panorama da situação do país?
Renata Libonati: O sistema Alarmes monitora atualmente os três principais biomas do Brasil: Amazônia, Cerrado e Pantanal. Principal no sentido daqueles que mais queimam. No Pantanal, do início do ano até 18 de setembro, cerca de 12,8% de sua área já havia sido queimada. Fazendo uma comparação com 2020, o pior ano já registrado, 2020 queimou cerca de 30% do bioma ao longo do ano.
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A média anual de queima do Pantanal gira em torno de 8%. Assim, 2020 ficou bem acima e 2024 também superou o percentual médio diário alcançado. Isso representa cerca de 1,9 milhão de hectares queimados em 2024 [para efeito de comparação, o estado do Sergipe tem quase 2,2 milhão de hectares]. Esse acumulado está abaixo do que foi queimado em 2020 no mesmo período, mas até o início de setembro o acumulado era maior que o mesmo período de 2020.
A Amazônia já teve cerca de 10 milhões de hectares queimados [o que equivale a mais que o estado de Santa Catarina]. Como a Amazônia é muito grande, isso representa cerca de 2,5% de sua área queimada. A situação é muito crítica. Este é o pior ano já registrado desde que tivemos medições aqui em nosso sistema, em 2012.
O Cerrado já queimou cerca de 11 milhões de hectares, o que corresponde a quase 6% de sua área. Este valor está ligeiramente abaixo do ano que mais queimou, que foi 2012.
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De modo geral, a situação é muito crítica nos três biomas. A Amazônia em seu auge histórico; e em outros biomas, muito próximo do máximo histórico.
Agência Brasil: Com os dados coletados, há indícios de ações criminosas e/ou coordenadas?
Renata Libonati: A monitorização por satélite não nos permite distinguir que tipo de ignição causou um determinado incêndio. O que posso dizer é que existem duas maneiras de iniciar um incêndio. A primeira é a forma humana, seja ela intencional ou criminosa. A segunda é a causa natural, que seria um raio.
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Percebemos um padrão de que, de todos os incêndios que acontecem no Brasil, cerca de 1% são causados por raios. Todos os outros 99% têm origem na ação humana. Desde maio até agora não houve ocorrência de incêndios provocados por raios no Pantanal. Isso é monitorado por satélite e com dados de descargas atmosféricas.
Isso nos diz que é fogo humano. Sabendo que existe um decreto que proíbe o uso do fogo em todas estas regiões devido à crise climática que vivemos este ano, todos estes incêndios, mesmo que não tenham sido intencionais, são de alguma forma criminosos. Exceto quando é acidental.
Agência Brasil: Essas ligações estão ligadas às atividades econômicas, principalmente à agricultura?
Renata Libonati: Existem vários fatores relacionados a esses incêndios. Por exemplo, o desmatamento, fator que está intimamente ligado ao início das queimadas, pois, em geral, o fogo é utilizado em algumas situações de desmatamento.
A ocorrência de queimadas no Brasil está intimamente relacionada ao uso do solo, às atividades econômicas, principalmente ligadas ao desmatamento para abertura de áreas para pastagens e agricultura e, quando já consolidado, o fogo é frequentemente utilizado por diversos motivos, e isso provoca os grandes incêndios que está vendo.
Agência Brasil: O fogo, que já foi um grande aliado da humanidade, está se tornando cada vez mais um inimigo?
Renata Libonati: É muito importante não esquecer que o fogo nem sempre faz mal. Regiões como o Cerrado e parte do Pantanal, que são formadas basicamente por regiões de savana, são o que chamamos de dependentes do fogo. Eles precisam da ocorrência anual de incêndios para manter a sua biodiversidade e o padrão do ecossistema. O que acontece é exactamente o que referiu, a acção humana alterou completamente o regime natural de incêndios nestas regiões para um regime actual muito mais agressivo, no sentido de que os incêndios são mais intensos, mais extensos e mais duradouros. Isto tem um efeito muito negativo mesmo em regiões que dependem do fogo.
É diferente da Amazônia e de qualquer floresta tropical, que chamamos de ecossistemas sensíveis ao fogo. Quando isso ocorre, é altamente prejudicial. É sempre bom fazer essa distinção entre Cerrado, Pantanal e Amazônia, pois as relações que cada ecossistema tem com o fogo são diferentes, e o uso do fogo pode ou não precisar ser tratado de forma diferente dependendo do ecossistema.
Agência Brasil: Como o sistema de Alarmes monitora?
Renata Libonati: O sistema de Alarmes foi lançado em 2020. Até então, o monitoramento via satélite da área queimada era feito com atraso de até três meses para termos estimativas de quanto e onde queimou. O sistema de Alarmes veio trazer informações muito exigidas pelos órgãos de combate e prevenção, que eram informações sobre a área queimada de forma rápida, quase em tempo real, para a realização de ações de planejamento de combate.
Usamos imagens de satélite da NASA [agência espacial americana]aprendizado de máquina profundo [um método de inteligência artificial] e informações sobre pontos críticos. Isso nos permitiu criar esses alertas rápidos. Embora antes precisássemos esperar de um a três meses para ter esses locais do que foi queimado, temos essa informação no dia seguinte ao incêndio. É atualizado diariamente com novas informações e tem sido aprimorado através da colaboração com entidades públicas e privadas e até mesmo com a sociedade. Eles nos ajudam a validar nossos alertas e a qualidade dos nossos dados, por exemplo, através do sistema Fogoteca.
As brigadas em combate tiram fotografias georreferenciadas e as inserem no sistema como forma de saber se nossos alertas estão corretos no tempo e no espaço. A Fogoteca vem crescendo desde então, nos ajudando a melhorar essas estimativas com informações de campo, que são muito importantes para validar e verificar a precisão do monitoramento que realizamos via satélite.
Agência Brasil: Houve uma atualização esta semana nos Alarmes, para aumentar a precisão.
Renata Libonati: Essa diferença de mostrar a área queimada com um atraso de três meses ou um dia vai permitir que você tenha melhor precisão quando tiver mais tempo para trabalhar nessas imagens do que quando tiver que fazer algo muito rápido, quando perder um pouco do precisão. É aquela manta curta, quando processo rápido perco qualidade, mas ganho agilidade. Quando tenho processamento lento perco agilidade, mas ganho qualidade.
Nossos alertas, por terem a capacidade de identificar rapidamente o que aconteceu, possuem uma qualidade mais restrita do que dados mais lentos. O que fizemos para atualizar isso foi combinar os dados mais lentos com os dados mais rápidos, de forma a reduzir essas imprecisões: efeitos de borda (superdimensionamento da área identificada) e omissões em casos específicos.
Agência Brasil: O sistema de Alarmes é uma ferramenta. Para conter a proliferação das queimadas no país são necessárias ações da sociedade e dos governos. Como especialista no assunto, você sugere caminhos a seguir?
Renata Libonati: O manejo do fogo não envolve apenas combate. Muito pelo contrário, o pilar precisa ser a prevenção. Isto envolve, por exemplo, a gestão da vegetação antes da época de incêndios, a criação de aceiros [terreno sem vegetação que serve como barreira para impedir a propagação do fogo]reduzir o material combustível seco, muitas vezes através de queima prescrita, quando se utiliza o que chamamos de “fogo frio”, antes da época de incêndios, quando a área ainda está húmida. Fragmente a paisagem para que quando chegar a época dos incêndios ela não tenha para onde ir porque você já retirou aquela biomassa de lá, contendo o fogo.
Essas técnicas de prevenção também incluem maior conscientização e educação ambiental sobre o uso do fogo. Maior fiscalização. Ações que precisam ser feitas continuamente ao longo de vários anos.
Dadas as condições climáticas que temos vivido nas últimas décadas e, especialmente, nos últimos anos, temos observado que estes eventos extremos, como grandes secas e ondas de calor, são cada vez mais frequentes, duradouros e persistentes e são estas as condições que levam a grandes incêndios. Então qualquer ignição se espalhará muito rapidamente, com muita intensidade, e o combate será muito difícil.
Mesmo que tenhamos um grande comprometimento, como está acontecendo neste ano por parte dos governos federal e estaduais comprometidos com o combate, essas condições climáticas ainda são muito desfavoráveis ao combate. É muito difícil de combater, por isso a prevenção deve ser sempre priorizada. O Brasil deu um primeiro passo nesse sentido, que foi a lei do Manejo Integrado do Fogo, aprovada no final de julho, sancionada pelo Presidente da República.
Essa lei permitirá uma mudança de paradigma na forma como o Brasil gerencia os incêndios, permitindo um pilar muito mais forte na prevenção do que no combate. Já demos um primeiro passo.
Agência Brasil: Pode-se dizer que as mudanças climáticas são uma ameaça não ao planeta, mas à vida humana?
Renata Libonati: O que vivemos hoje é resultado do que a humanidade tem feito ao longo de várias décadas. Precisamos realmente de fazer uma mudança na forma como utilizamos o planeta porque o nosso estilo de vida atual é incompatível com o bem-estar da nossa sociedade no futuro.
Se continuarmos a emitir gases de efeito estufa na mesma faixa que temos hoje, teremos, segundo os modelos climáticos, de 2050 a 2100, ocorrências muito mais frequentes de ondas de calor, secas, inundações como a que vimos no Rio Grande do Sul. Isso impactará diretamente a vida humana. É importante chamar a atenção para o fato de que as pessoas que vivem em maior vulnerabilidade são sempre as que serão mais impactadas.
Agência Brasil: Voltando ao sistema de Alarmes, é uma demonstração de que a academia está focada nas necessidades atuais da sociedade?
Renata Libonati: Esta ideia de que a universidade vive fechada dentro das suas quatro paredes já não é válida. As universidades públicas, há algumas décadas, mudaram a forma de fazer ciência, caminhando para uma ciência que visa ajudar a resolver os problemas que a nossa sociedade tem hoje. Alarmes é, aliás, um bom exemplo de que todo o conhecimento gerado na academia pode ser utilizado para trazer benefícios na resolução desses problemas. Neste caso, a gestão do fogo, o que também levará à melhoria da qualidade do ar.
No caso da Alarmes, o desenvolvimento foi possível graças a uma abordagem do Prevfogo [Centro Nacional de Prevenção e Combate aos Incêndios Florestais] do Ibama [Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis]que financiou edital no CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico]. Foi uma notícia inédita e eles trouxeram à tona os principais problemas que tinham. Um desses problemas foi o monitoramento mais rápido da área queimada. Então é muito importante que haja investimentos públicos na universidade para que possamos desenvolver e melhorar cada vez mais a inovação que podemos ter.
Também tivemos muitos investimentos de ONGs [organizações não governamentais]como Greenpeace, Wetlands Internacional, WWF, CEPF, Terra Brasilis. Uma série de ONGs preocupadas com questões ambientais e que promoveram algumas melhorias no sistema.
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