Há cinco anos, a bióloga Kamilla Souza, 33, carrega cérebros de golfinhos embalsamadas em fraldas e armazenadas em potes nos aeroportos do país, atravessando o Nordeste em picapes carregadas com cérebros de cetáceos e acompanhando a chegada de amostras gigantes de fragmentos de baleias às universidades do Brasil.
Pós-doutoranda pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e apoiada pelo Instituto Serrapilheira, está montando a maior coleção de cérebros de cetáceos da América Latina. Hoje, já existem 55 cérebros de golfinhos armazenados em uma geladeira na universidade e disponíveis para estudos em neuroanatomia comparativa, ramo da ciência que tem como foco a compreensão das semelhanças anatômicas entre as espécies.
Pesquisas na área podem gerar informações importantes para ajudar a compreender o impacto das atividades humanas, como o aquecimento global causado pelas emissões de gases de efeito estufa sobre as espécies, auxiliando nas estratégias de preservação animal. Eles também têm o potencial de ajudar a compreender o próprio cérebro humano através de análises comparativas.
O fruto mais recente dessa empreitada científica foi colhido há algumas semanas, gerando a primeira publicação em revista internacional, Brain Structure and Function, descrevendo detalhadamente o cérebro do boto cinza, golfinho frequentemente avistado em águas brasileiras.
A pesquisa, além de trazer novas informações, esclarece uma das grandes polêmicas sobre o grupo dos cetáceos: eles possuem sim uma glândula pineal, órgão responsável pela regulação do relógio biológico — algo que muitos pesquisadores duvidavam.
“Temos muitos estudos que falam sobre o comportamento dos golfinhos, mas também é necessário gerar informações sobre o seu sistema nervoso para entender questões evolutivas, investigar como o ambiente influencia o cérebro dos animais, entre muitas outras coisas que contribuem não só para uma melhor conhecimento desses animais, mas também no desenvolvimento de estratégias de conservação do grupo”, afirma Kamilla, que também é fundadora da Rede Brasileira de Neurobiodiversidade, dedicada a esses estudos.
A ideia de criar um repositório cerebral no Brasil começou quando o pesquisador ainda era estudante de graduação. Ela começou a se interessar pelos cérebros de grandes mamíferos, mas teve dificuldade em realizar mais estudos devido à falta de material disponível e à expertise de pesquisadores brasileiros na área.
“Até então era necessária a importação de amostras de outros países porque as técnicas de coleta e armazenamento do material eram desconhecidas dos pesquisadores brasileiros. Não é só aqui que a logística de manipulação e colheita de órgãos de grandes cetáceos, como baleias e golfinhos, é um obstáculo significativo que limita os estudos destes animais em comparação com outros”, afirma.
Em 2018, o então mestre em neurociências e pós-doutorando da UFRJ apresentou à comissão de seleção do doutorado um projeto de pesquisa que pretendia estudar e mapear detalhadamente o cérebro de quatro golfinhos brasileiros.
Diante do ceticismo de seus professores, a pesquisadora insistiu no projeto e viajou para o Japão, onde passou dois meses na Universidade de Hokkaido aprendendo a extrair e armazenar cérebros de grandes cetáceos, como as baleias-de-bico (Ziphiidae), mamíferos aquáticos raros.
De volta ao país, e trazendo na bagagem conhecimentos inéditos para a ciência brasileira, a doutoranda começou a pedir ajuda a pesquisadores e grupos conservacionistas para que soubesse quando e onde os animais ficaram encalhados.
Quando ainda era possível, as equipes realizaram o resgate, mas quando o cetáceo já estava morto, Kamilla teve em média 24 horas para extrair o cérebro e enviá-lo ao laboratório, garantindo as condições de conservação necessárias para novos estudos.
Ela viveu experiências únicas, como extrair o cérebro de um filhote de baleia jubarte de um mês, no sul da Bahia, que já tinha mais de quatro metros de comprimento — o que impossibilitou levá-lo ao laboratório.
“A extração de órgãos destes animais é muitas vezes desafiante e complexa, pois requer um planeamento adequado e muitas vezes ocorre em condições adversas, mesmo na praia. Porém, ter acesso aos cérebros desses gigantes marinhos abre portas para diferentes linhas de estudos neuroanatômicos, e isso é muito fascinante”, lembra.
Kamilla também passou a passar por outras dificuldades após a extração, como a burocracia envolvendo o transporte dessas amostras e licenças para coleta.
“Foi um período em que viajei muito. Recebi ligações de diversas partes do país. E comecei a perceber que muitos também estavam interessados em aprender técnicas de extração de material e pesquisa com cérebros. Foi então que percebi que poderia criar uma rede de pesquisa.”
O biólogo começou a treinar com equipes em vários pontos do país, qualificando técnicos, veterinários e pesquisadores brasileiros. Em 2024, ela formalizou a Rede Brasileira de Neurobiodiversidade, que hoje conta com 14 instituições parceiras no Brasil e outras duas instituições internacionais, e passou a receber apoio do Instituto Serrapilheira para a missão.
“Comecei meu doutorado com o desafio de conseguir quatro amostras e acabei com mais de 50”, comemora.
Os golfinhos são considerados animais excepcionalmente inteligentes, e muitos pesquisadores acreditam que estudar detalhadamente seus cérebros também pode ajudar a compreender a espécie humana por meio de análises comparativas.
Entre as semelhanças que estes animais marinhos partilham com os humanos está o facto de terem ciclos de vida extensos e gestações igualmente longas. Além disso, assim como os humanos, vivem muito tempo após o período reprodutivo, o que não é comum em outras espécies.
Já existem estudos que sugerem, por exemplo, os golfinhos como modelo para investigação de doenças degenerativas.
“Quando você estuda Alzheimer em roedores, por exemplo, é preciso induzir a doença neles. No caso dos cetáceos, vemos que eles desenvolvem espontaneamente características morfológicas no cérebro semelhantes às desenvolvidas pelos humanos com esta doença. Então, esse pode ser um campo de estudo importante para entender melhor a doença”, explica Kamilla.
É por essas e outras potencialidades que o pesquisador conseguiu recentemente firmar parcerias com outras instituições para ampliar a rede de estudos e viabilizar novas infraestruturas.
Hoje, o laboratório que armazena as amostras fica na UFRJ, mas o grupo de pesquisadores também monta uma nova base no Espírito Santo, com o Instituto Orca, e estuda a viabilidade de outra na Bahia, com o Instituto Baleia Jubarte.
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